Conceituamos analiticamente crime como um fato típico, ilícito e
culpável. A legítima defesa é uma das excludentes de ilicitude conforme prevê o
artigo 23 do nosso Código Penal, mais precisamente em seu inciso II, verbis:
I - omissis;
II - em
legítima defesa;
Esse instituto, nas palavras de Nucci, é definido como “a defesa
necessária empreendida contra agressão injusta, atual ou iminente contra direito
próprio ou de terceiro”.[1]
Mais ainda,
o mesmo autor explica que:
Trata-se do mais tradicional
exemplo de justificação para a prática de fatos típicos. Por isso sempre foi
acolhida o longo dos tempos em inúmeros ordenamentos jurídicos, desde o direito
romano, passando pelo direito canônico, até chegar à legislação moderna.
Agora,
quem teria que provar a existência da excludente de ilicitude? A defesa ou o Ministério
Público (Acusação)?
Você deve
ter pensado: o ônus da prova é da acusação!!!
Verdade!!!
Os Tribunais pátrios já trataram do assunto e
têm decidido que no sistema acusatório a prova necessária e indispensável para
condenar qualquer cidadão incube ao Ministério Público (a acusação). Não há no
processo penal, por exemplo, o instituto da inversão do ônus da prova. Cabe ao órgão acusador a produção das provas referentes aos fatos imputados na
denúncia.
Vejamos algumas ementas que indicam o
pensamento de diversos Tribunais:
TJ-RJ - APELACAO APL 01515681220108190001 RJ 0151568-12.2010.8.19.0001 (TJ-RJ)
Data de publicação: 10/10/2012
Ementa: APELAÇÃO
MINISTERIAL. USO DE DOCUMENTO FALSO. PROVA DUVIDOSA QUANTO À CIÊNCIA DO APELADO ACERCA DA ORIGEM ILEGÍTIMA
DE SUA CARTEIRA NACIONAL DE HABILITAÇÃO. DOLO NÃO COMPROVADO. PRINCÍPIO DO IN
DUBIO PRO REO.
Absolvição que se mostrou acertada. A provaindubitável de que
o apelado tinha pleno conhecimento da falsidade de sua CNH não restou
evidenciada pelo órgão acusador. Ônus da prova no processo penal que pertence ao Ministério Público, exclusivamente. A falsidade que é
idônea a iludir terceiros, mas não foi suficiente para iludir o policial.
Aplicação do Princípio do In Dubio Pro Reo que se impõe. RECURSO CONHECIDO E
DESPROVIDO para manter a sentença vergastada nos exatos termos em que foi
proferida. (grifamos)
HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. SISTEMA ACUSATÓRIO.
INTELIGÊNCIA DOART. 156 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. DECISÃO CONDENATÓRIA.
FUNDAMENTAÇÃO DEFICIENTE. INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA. IMPOSSIBILIDADE. DOCUMENTO
APRESENTADO PELA DEFESA IGNORADO PELO ÓRGÃO JULGADOR. VIOLAÇÃO DO DEVIDO
PROCESSO PENAL E INFRINGÊNCIA AOS ARTIGOS 231 E 400 DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL. CONSTRANGIMENTO EVIDENCIADO. ORDEM CONCEDIDA.1. O órgão acusador tem
a obrigação jurídica de provar o alegado e não o réu demonstrar sua
inocência. 2. É característica inafastável do sistema processual penal
acusatório o ônus da prova da acusação, sendo vedado, nessa linha de
raciocínio, a inversão do ônus da prova, nos termos do art. 156 do Código de
Processo Penal. 3. Carece de fundamentação idônea a decisão condenatória que
impõe ao acusado a prova de sua inocência, bem como ignora documento
apresentado pela Defesa a teor dos artigos 231 e 400 do Código de Processo
Penal. 4. ORDEM CONCEDIDA para anular a decisão condenatória, para que outro
julgamento seja proferido, apreciando-se, inclusive, a prova documental
ignorada.(STJ – Rel. Min. Paulo Medina – Sexta Tuma- HC 27684 – DJ Data :09/04/2007,
pg. 267) (grifamos)
TJ-BA - APELAÇÃO APL 61332005 BA 613-3/2005 (TJ-BA)
Data de publicação: 02/02/2010
Ementa: DIREITO PENAL. DELITO DE ROUBO, AUTORIA DELITIVA. AUSÊNCIA DE PROVAS. PROVIMENTO. I - A CONDENAÇAO ESTADEOU-SE, SÓ E
SOMENTE, NA CONFISSAO EXTRAJUDICIAL DO RECORRENTE, A QUAL FOI RETRATADA EM
JUÍZO. O APELANTE, MALGRADO HAJA CONFESSADO, NA FASE INQUISITORIAL, NEGOU A
IMPUTAÇAO, EM JUÍZO, QUANDO SUBMETIDO AO PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO. II - NAO ENCONTRA RESSONÂNCIA JURÍDICA A
CONDENAÇAO PENAL DE ALGUÉM, TAO-SOMENTE, COM ESCORAS, EM PROVA, COLIGIDA, NA FASE INVESTIGATÓRIA, DE RESTO, NAO CORROBORADA
POR OUTROS ELEMENTOS PROBATÓRIOS. ART. 155 , DO CPP . III. SABE-SE E RESSABE-SE
QUE O ÔNUS DA PROVA, NO PROCESSO PENAL, É DA ACUSAÇAO, EM HOMENAGEM AO PRINCÍPIO DA NAO-CULPABILIDADE,
UMA VEZ QUE 'O NATURAL NOS HOMENS É A INOCÊNCIA, PELA QUAL SE PRESUME,
CORRESPONDENDO À ACUSAÇAO A OBRIGAÇAO DA PROVA ... (grifamos)
TJ-RS - Apelação Crime ACR 70055729685 RS (TJ-RS)
Data de publicação:
11/09/2013
Ementa: APELAÇÃO CRIME.
INSUFICIÊNCIA DE PROVAS DA AUTORIA. POSSE
DA RES FURTIVAE. ÔNUS DA PROVA. 1 - O caderno probatório deixa invencível dúvida
quanto à participação do acusado no furto descrito na
denúncia, sobretudo porque nenhuma testemunha presenciou o delito. Presente a
dúvida, diante de tais circunstâncias, a absolvição é medida impositiva, face
ao princípio in dubio pro reo. 2 - A apreensão de parte da res furtiva em poder
do acusado não tem o condão de determinar a inversão do ônus da prova no processo penal e tampouco de
comprovar, por si só, a autoria delitiva. Absolvição operada. POR MAIORIA,
APELO DEFENSIVO PROVIDO. (Apelação Crime Nº 70055729685, Quinta Câmara
Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Francesco Conti, Julgado em
04/09/2013)
Mas, você já deve ter ouvido a
seguinte afirmação: o ônus da prova é de quem alega. Se o réu está alegando a
legítima defesa ele deve prová-la. Ou talvez esta outra: o ônus da acusação é
de provar a autoria e a materialidade. A prova da existência de uma excludente
é de quem alega, ou seja, da defesa.
Veja, por exemplo, o que disse Fernando da Costa Tourinho Filho:
Se, por acaso, a Defesa arguir em
seu prol uma causa excludente de antijuridicidade ou de culpabilidade, é claro
que, nessa hipótese, as posições se invertem, tendo inteira aplicação a máxima
actori incumbit probatio et reus in excipiendo fit actor... Diga-se o mesmo se
a Defesa alegar a extinção da punibilidade.[2]
Seguem alguns ementários que indicam
que a prova da legítima defesa é do agente. Vejamos:
TJ-MG - Inteiro Teor. Apelação Criminal: APR 10637130018533001 MG
Data
de publicação: 01/09/2014
Decisão:
que a alega. Nesse sentido é a jurisprudência:
"O ônus da prova da legítima defesa é
do agente. Para ser.... Vale lembrar que, em se tratando de defesa
legítima, a prova de sua comprovação compete ao agente...,
cujas palavras peço vênia para subscrever, ainda que o agente tenha
agido"em legítima defesa...
TJ-RJ - APELAÇÃO CRIMINAL APR 00138112920138190208 RJ 0013811-29.2013.8.19.0208 (TJ-RJ)
Data de publicação: 19/03/2015
Ementa: de
sua obra " CÓDIGO DE PROCESSO PENAL INTERPRETADO", Editora Atlas
S.A., 3.ª edição, ao comentar o retro mencionado art. 156 do Código de Processo
Penal , ad litteram: ". No processo penal condenatório, oferecida a
denúncia ou queixa cabe ao acusador a prova do fato típico (incluindo
dolo e culpa) e da autoria, bem como das circunstâncias que causam o aumento da
pena (qualificadoras, agravantes etc.); ao acusado cabe a prova das
causas que excluem a antijuridicidade, culpabilidade e punibilidade, bem como
das circunstâncias que impliquem diminuição da pena (atenuantes, causas de
diminuição da pena etc.), ou concessão de benefícios penais ." (grifei).
Outro não é o entendimento de FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, conforme
se pode verificar na pág. 360 do volume 1 de sua obra " CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL COMENTADO", Editora Saraiva, 5.ª edição, ao comentar o aludido art.
156 do Código de Processo Penal , verbo ad verbum: "Ônus da prova
nada mais é senão o encargo, que compete à parte que fizer a alegação,
de demonstrá-la. Provar não é obrigação; é simples encargo. Se a
parte que fizer a alegação não prová-la, sofrerá amarga decepção. Cabe à Acusação demonstrar, e
isto de modo geral, a materialidade e a autoria. Já à Defesa incumbe provar eventual alegação de exclusão da
antijuridicidade do fato típico (causas excludentes da criminalidade,
excludentes da antijuridicidade, causas justificativas ou descriminantes) ou
excludentes de culpabilidade. Se o réu invoca um álibi, o ônus da prova é seu. Se
argúi legítima defesa, estado de necessidade etc, o onus probandi é inteiramente seu. Se alegar e não provar, a decepção também será
sua" (grifei). Urge ressaltar que a aplicação do princípio
da adequação social há de ser afastada, uma vez que o mesmo é dirigido
ao legislador e não ao aplicador do direito. No que diz respeito à alegação de
insuficiência de provas para a condenação, a mesma também não pode
prosperar, já que a materialidade restou positivada pelo laudo de fl. 19...
Por outro lado, mas aparentemente mantendo o ônus de provar a
excludente de ilicitude com a defesa, há entendimento que se as testemunhas e
outras provas nada dizem, a palavra do réu é de suma importância a fim de
elucidar o crime. Vejamos decisões do Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
PROCESSUAL PENAL – ABSOLVIÇÃO
SUMÁRIA – LEGÍTIMA DEFESA CONFIGURADA – RECURSO DESPROVIDO – Excepcionalmente
tem se admitido o reconhecimento da excludente através da absolvição sumária,
aceitando-se a palavra do réu, desde que corroborada por indícios e
circunstâncias. "Excludente
reconhecida tendo como prova exclusiva a palavra do réu- Inexistência de
qualquer outra prova em sentido contrário. "Inexistindo prova em sentido
contrário, a palavra exclusiva do réu pode ser suficiente para o reconhecimento
da legítima defesa, impondo-se, neste caso a absolvição sumária"
(Revista dos Tribunais 666/288). (TJSC – RCr 2007.060667-6 – Rel. Des. Amaral E
Silva – J. 05.03.2008)
“A ausência de testemunhas de
vista não constitui, por si, motivo impediente ao reconhecimento da legítima
defesa. A palavra do réu, verossímil e corroborada por indícios concludentes,
autoriza se acolha a justificativa”. (1ª C. Criminal, rel. Des. Marcílio Medeiros
RF 263/351)
Quando fico
em dúvida sobre a aplicação de uma regra infraconstitucional, eu vou à
Constituição Federal. Nesse caso ela me informa no artigo 5º, inciso LVII que, “ninguém será considerado culpado até o
trânsito em julgado de sentença final condenatória”.
Vegas Torres,[3]
analisando o princípio da presunção de inocência, conforme insculpido na
Declaração dos Direitos do Homem, extraiu algumas características:
a) É um princípio fundante, em torno do qual
é construído todo o processo penal liberal (...).
b) É um postulado que está diretamente
relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual
haveria de partir-se da ideia de que ele é inocente e, portanto, deve
reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo
(...).
c)
É uma regra (...). A prova completa da
culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do
imputado se a culpabilidade não for suficientemente demonstrada. (Grifei)
O princípio da
presunção de inocência tem, portanto, pelo menos, dois aspectos: a)
regra probatória: ônus da prova da acusação; b) regra de tratamento:[4]
1) excluir ou restringir ao máximo a utilização da prisão cautelar; e 2)
absolvição em caso de dúvida.
Pois bem, se o indivíduo tem a garantia
de ser tratado como inocente, seria dele o ônus de provar que cometeu um ato
lícito (excludente de ilicitude)?
Vale rememorar a lapidar decisão do eminente
Ministro Celso de Mello que tratou do ônus da prova no processo penal [5]:
O processo penal condenatório não é um instrumento de arbítrio do
Estado. Ele representa, antes, um poderoso meio de
contenção e de delimitação dos poderes que dispõem os órgãos incumbidos da
persecução penal. Ao delinear um círculo de proteção em torno da pessoa do réu
– que jamais se presume culpado, até que sobrevenha irrecorrível sentença
condenatória – o processo penal revela-se instrumento que inibe a opressão
judicial e que, condicionado por parâmetros ético-jurídicos, impõe
ao órgão acusador o ônus integral da prova, ao mesmo tempo em que faculta
ao acusado, que jamais necessita demonstrar a sua inocência, o direito de
defender-se e de questionar, criticamente, sob a égide do
contraditório, todos os elementos probatórios produzidos pelo Ministério
Público. (grifo nosso)
E você o que acha? O ônus de provar uma
excludente de ilicitude é da acusação ou da defesa? Comente!
[1] NUCCI,
Guilherme de Souza.
Código Penal Comentado. 3ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, p. 153.
[2] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo
Penal, vol.3, 30.ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p.245
[3] VEGA TORRES (1993, p. 35 e ss) apud LOPES JÚNIOR, Aury. Processo Penal e sua Conformidade com a
Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2008, p. 180.
[4] Para Aury Lopes Júnior, o dever de
tratamento tem duas dimensões: interna e externa. “Na dimensão interna, é um
dever de tratamento imposto – primeiramente – ao juiz, determinando que a carga
da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente, não precisa
provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente à absolvição; ainda na
dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares
(como prender alguém que não foi devidamente condenado?). Externamente ao
processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade
abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Vide LOPES JUNIOR, Aury. Processo Penal e sua Conformidade com a
Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 182.
[5] S.T.F. – HC nº 73.338-7 – RS, 1ª Turma, Rel. Min.
Celso de Mello, j. 7/11/89, DJU de 14/8/92, p. 12.225. ementa parcial.

Nenhum comentário:
Postar um comentário