Erguer as Mãos que Pendem

Erguer as Mãos que Pendem

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Para quem não leu, aqui vai um dos capítulos do meu livro: Criminalista sim, senhor!

 
NÃO PROMETA RESULTADOS

Quando um advogado é procurado por um futuro cliente, é comum ser indagado se o acusado será absolvido, quando será solto etc. Não raro, pauta-se o diálogo por um pedido de promessa, promessa de resultado. Nesse contexto, é possível que o advogado se sinta tentado a fazer a promessa. Talvez tenha uma autoconfiança maior que a média, ou não queira perder o cliente e, por conseguinte, os honorários. O fato, porém, é que não se deve prometer resultado.

 O contrato de defesa é de meio, e não de fim. Você pode prometer empenhar-se ao máximo para alcançar o melhor resultado possível, mas não pode cair na tentação, repito, de prometer resultado. Para além da qualidade de seu trabalho, no fim das contas é o juiz quem julga, e o que pode parecer certo e até simples para você pode não parecer ao juiz.

Lembro-me, a propósito, de ter sido procurado por uma senhora para trabalhar no caso de seu irmão. Fora preso, conforme informação policial, em flagrante. E continuava na cadeia. Uma das piores delegacias em que eu já entrei. Era afastada, numa rua sem calçamento, sem saída. Não havia iluminação nem natural, nem artificial. Era fétida, embolorada. Não havia colchão, não havia comida, não havia água, não havia nada.

Após tratarmos dos pormenores do contrato e de pedir os documentos necessários para iniciar os trabalhos, fui até à famigerada delegacia, onde deparei com um homem de meia-idade, alto, magro, sorriso pequeno. Tão tímido que falava em intensidade quase inaudível. A acusação que pesava sobre ele? Homicídio.

Ele havia matado um homem que entrou em sua casa enquanto ele estava fora. Em resumo: ao chegar a casa, de madrugada, deparou-se com um estranho, que estava na garagem, com uma sacola cheia de objetos. Perguntou-lhe o que fazia ali e recebeu como resposta um golpe do que parecia ser um pedaço de madeira. Caiu tonto, mas próximo havia uma barra de ferro, parte do eixo de um velho carro. Pegou a barra de ferro e atingiu o invasor com duros golpes, pelo menos três na cabeça. O homem caiu no chão, estava morto. Meu cliente contou que ficara aperreado, sem saber o que fazer. Nunca havia passado por aquilo. Com medo de ser preso, não quis chamar a polícia, confessou. Resolveu, pois, tirar o corpo dali, colocando-o num saco plástico, na mala do carro que estava do lado de fora da casa. Em seguida, conduziu o corpo até um canavial. Feito isso, não quis voltar para casa e, como já era quase oito horas do dia, foi trabalhar.

Ocorre, no entanto, que alguém viu a cena e avisou a polícia, que foi até a casa e, não encontrando ninguém, descobriu onde meu cliente trabalhava. Na parte da tarde, lá chegaram três policiais e perguntaram por ele. Pediram que meu cliente os seguisse até a delegacia, onde lhe deram voz de prisão sob o argumento de que estava preso em flagrante pelo homicídio de um cidadão ocorrido na manhã daquele dia e que, segundo informações, o fato ocorrera dentro de sua casa. Tudo foi confirmado pelo meu cliente durante o interrogatório.

Com o conhecimento desses fatos, fiquei pensando qual seria a melhor saída. A meu ver, não havia flagrante. Meu cliente – vou chamá-lo de Joaquim – não foi preso cometendo o crime; também não houve perseguição. Ao contrário, houve diligências e investigações para saber onde se encontrava. Ele foi para a delegacia em seu próprio carro, sem nenhuma espécie de coação ou resistência. Não foi preso com os instrumentos do crime. Pensei, enfim, se o melhor seria fazer um pedido de relaxamento da prisão, já que ela era ilegal. Por outro lado, ele era primário, sem antecedentes, não resistira à prisão, tinha trabalho, residência fixa, família e acabara de constituir um defensor. As circunstâncias do crime, mesmo em tese, favoreciam-no. Era um prato cheio para pedir a liberdade provisória. Ora, o que mais importava era vê-lo fora daquela cela imunda, com sua liberdade restaurada. Na dúvida, fiz os dois pedidos na mesma peça.

Narrei como a prisão ocorrera e argumentei que não havia prisão em flagrante. No nosso sistema ou se é preso em flagrante, ou por ordem escrita de um juiz competente. E, se não havia ordem judicial e não era flagrante a prisão, deveria ser relaxada imediatamente. Também sustentei que, se o magistrado entendesse haver flagrante, como não havia necessidade de Joaquim permanecer preso, fosse concedida a liberdade provisória.

Assim procedi: fiz a peça, juntei os documentos e corri para o fórum. Dei entrada na petição e solicitei falar com o juiz da Vara do Júri, que me atendeu prontamente, escutando-me com muita atenção. Depois, afirmou que, se tudo estivesse comprovado conforme eu lhe narrara, iria conceder a liberdade provisória. Em seguida, procurei a família do cliente e disse que estava tudo certo.

Perguntaram-me, por óbvio, quando ele sairia da prisão. Eu enchi o peito e disparei: hoje! Voltei ao fórum e, para minha surpresa, vi o juiz passar pelo corredor em direção aos elevadores. Achei estranho, comecei a ficar preocupado.

Fui até à Vara, onde me informaram que o magistrado iria viajar e só voltaria na semana seguinte, segunda ou terça-feira. “E meu alvará de soltura já foi assinado?”, perguntei aflito. O juiz havia esquecido a promessa feita mais cedo. O que ele prometera? Que concederia a liberdade. O problema é que ninguém disse quando! E o problema maior é que eu já havia me comprometido ao garantir que Joaquim estaria solto naquele mesmo dia, uma quinta-feira.

Assim, não me restou alternativa: saí correndo da Vara, desci pelas escadas feito um louco! Peguei o juiz dentro do carro, no estacionamento, já de saída. Fiz sinal, ele parou. Expliquei o caso, inclusive minha imprecaução – já havia me comprometido com a família que o cliente seria solto naquele mesmo dia –, e fui advertido: “Doutor, o senhor já deve saber que não se pode prometer nada ao cliente”. Ele, muito atenciosamente, desceu do carro, voltou comigo para a Vara, redigiu a decisão e assinou o alvará de soltura.

Joaquim foi, finalmente, solto naquele mesmo dia. As promessas foram cumpridas: a que eu fiz para a família dele e a que eu fiz para mim mesmo, ou seja, de nunca mais prometer nada ao cliente, além de um trabalho sério.

Um comentário:

  1. Recomendo bastante o livro Criminalista sim, Senhor!
    São vários casos vividos pelo experiente e renomado advogado Dr. Bruno Barros, onde o mesmo relata tais casos de forma bastante descontraída, mas sempre transmitindo importantes lições para a prática da advocacia.

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