O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE COMO REQUISITO DE CONSTITUCIONALIDADE DA PRISÃO CAUTELAR
Bruno Vasconcelos Barros
Observação: As notas de rodapé e indicações bibliográficas foram retiradas para não enfadar o leitor.
Palavras Chaves: princípios, proporcionalidade, processo penal, prisão cautelar.
Introdução
No Estado democrático de direito se pretende que as esferas do poder público se limitem ao máximo a não restringir direitos e garantias fundamentais do corpo social. Em caso de necessidade de restrição de direitos, não deve haver excessos, em outras palavras, sempre que se quiser restringir direito fundamental é preciso verificar se realmente é necessário e se não há outro meio menos gravoso para se chegar ao fim desejado.
A proporcionalidade nasceu sob a expectativa de limitar o poder estatal de restringir as liberdades do corpo social. Inicialmente, surgiu para ser aplicado no direito administrativo e constitucional, mas galgou larga aplicação em todas as áreas do direito e, principalmente, no processo penal, ramos do direito que tem a potencialidade de atingir mais gravosamente os direitos individuais.
O Estado democrático de direito que deveria ter o compromisso de promover a justiça e materializar as garantias e direitos constitucionais, em homenagem ao combate e diminuição da criminalidade, entrou num espiral de retrocesso, tornando-se um estado policialesco, utilizando o processo penal como instrumento de punição e não como garantia do indivíduo contra a ingerência pública, tornando, em muitos casos, as garantias constitucionais em letra morta.
As medidas cautelares de privação de liberdade têm tido larga utilização no processo penal brasileiro. O que deveria ser exceção se tornou uma quase regra. Tem-se um número elástico de possibilidades de prender alguém antes de o trânsito em julgado da sentença e pelos mais diversos motivos.
O Estado tem sido rápido em prender provisoriamente e lento em dar a resposta definitiva. Certamente, por ser mais simples e, ao mesmo tempo, garantir que a sede de vingança social seja saciada, pois de forma rápida e notória a sociedade observa a reação estatal que toma posse da liberdade de alguém, encarcerando-o.
No sistema processual pátrio ainda se decreta prisão preventiva em casos de crimes cuja pena mínima não é superior a um ano, quando, em regra, seria possível uma suspensão condicional do processo. Decreta-se prisão em crimes dolosos sem violência ou grave ameaça a pessoa cuja pena máxima não ultrapassa quatro anos, quando o Código Penal previu, no seu artigo 44, a possibilidade de substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos. Ainda se mantém preso um cidadão por anos, sem julgamento, mesmo quando o tempo de encarceramento provisório já permitiria a progressão de regime ou mesmo livramento Condicional.
No sistema pátrio a prisão temporária (Lei n.7960/89), apesar de tão criticada, sendo verdadeira prisão para averiguação, está em pleno vigor e sendo aplicada sem nenhuma moderação, basta verificar as midiáticas operações federais e estaduais em todo o Brasil. Segundo o próprio texto da Lei, essa modalidade de prisão tem finalidade de produção desimpedida de prova, podendo ser decretada inclusive quando o suspeito não tem residência ou identificação civil. Estando no século XXI não haveria outros meios menos gravosos para se conseguir o fim pretendido? Não bastaria a intimação para interrogar o suspeito? Não bastaria a quebra de sigilo bancário, fiscal ou telefônico? Não bastaria uma ordem de busca e apreensão ou de exibição de coisas ou documentos? Se não tem identificação, não seria fácil para o estado providenciar?
É nesse contexto que o presente estudo propõe a aplicação do princípio da proporcionalidade como requisito de validade constitucional do decreto de prisão cautelar ou de sua manutenção.
Proporcionalidade – conceito – nomenclatura – fundamento - conteúdo - finalidade
Segundo Willis Santiago a proporcionalidade traz a idéia de “uma limitação do poder estatal em beneficio da garantia de integridade física e moral, dos que lhe estão sub-rogados” . Nessa mesma linha D`Urso, afirmando que é consenso doutrinário e jurisprudencial que a proporcionalidade tem “natureza de contenção e moderação dos atos estatais em favor da proteção dos direitos do cidadão”, em parágrafo posterior cita Bonavides, quando afirmou que “a proporcionalidade ó o instrumento mais poderoso de garantia dos direitos fundamentais” .
A doutrina brasileira, na maioria, utiliza a expressão “princípio da proporcionalidade” . No entanto, alguns doutrinadores seguem outras nomenclaturas, tais como, “postulado da proporcionalidade” , “regra da proporcionalidade”, “máxima da proporcionalidade” .
Apesar de o nomem iuris não ser o centro presente estudo, concorda-se com Humberto Ávila que tal definição vai além da questão de nomenclatura, sendo “um problema fenomênico, de coerência e de justificação” . Destaque-se, entretanto, que para alguns autores, a questão de qual denominação seria a mais correta não influencia no resultado prático, nesse sentido, Wilson Steinmetz, in verbis:
Há uma tendência no discurso jurídico de qualificar como “princípios” normas que são havidas, por razões diversas (ora razões jurídicas, ora razões axiológicas, ora razões empíricas), como muito importantes no ou para o sistema jurídico.
Não está claro, ainda, se, no plano interpretativo-aplicativo, a questão terminológica produz interferências conceituais e metodológicas relevantes do ponto de vista dos resultados práticos e sua justificabilidade e controlabilidade racionais. Dizendo de outro modo, não está claro se o dissenso terminológico tem implicações hemenêutico-constitucionais relevantes.
Por concordar com Santiago, adota-se, neste estudo a nomenclatura princípio da proporcionalidade.
Mesmo sem um consenso sobre a melhor nomenclatura, a proporcionalidade é reconhecidamente mandamento constitucional, embora a doutrina difira quanto a seu fundamento. A proposta é que seja considerada uma garantia fundamental, na esteira do pensamento de Willis Santiago:
O Princípio da proporcionalidade se consubstancia em uma garantia fundamental, ou seja, direito fundamental com uma dimensão processual, de tutela de outros direitos – e garantias – fundamentais, passível de se derivar da “cláusula do devido processo” .
Para alguns o fundamento desta garantia fundamental está no estado social de direito, para outros no devido processo legal e há os que afirmam que está implícita em várias normas constitucionais se subsumindo, portanto, no art. 5, parágrafo 2 da CF/88. O certo é que, como dito, a proporcionalidade é um princípio garantidor.
É preciso esclarecer, desde logo, que a proporcionalidade tratada não é a mera proporção, como se encontra em Ferrajoli (princípio de proporcionalidade da pena) , ou em Ripolés (princípio da proporcionalidade) , como pareceu querer dizer D`Urso quando citou Beccaria – “deve haver proporção entre crimes e castigos” - e Aristóteles – “(...) o proporcional é o meio-termo, e o justo é o proporcional” . A proporcionalidade aqui tratada é a descrita por Humberto Ávila, que chama a atenção para que “a idéia de proporção é recorrente na Ciência do Direito” e que “a idéia de proporção perpassa todo o Direito, sem limites ou critérios” . Eis a concepção da proporcionalidade que se propõe:
O postulado da proporcionalidade não se confunde com a idéia de proporção em suas mais variadas manifestações. Ele se aplica apenas a situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção do meio?).
A adequação (também denominado de idoneidade), a necessidade (também denominado de exigibilidade) e a proporcionalidade em sentido estrito são tidos como “elementos”, “máximas parciais”, “requisitos intrínsecos” ou “princípios parciais ou subprincípios da proporcionalidade”, conferem à proporcionalidade “densificação concretizadora a um direito fundamental” . Na verdade, a análise da proporcionalidade de uma medida estatal passa pela análise dos requisitos ou subprincípios citados.
Não se pode olvidar do conflito existente no processo penal entre a liberdade do cidadão e a pretensão punitiva do estado. É nesse contexto que a proporcionalidade surge como limitadora das ingerências estatais nas liberdades do corpo social. Como bem afirmou D`Urso, “a proporcionalidade contextualiza-se no processo penal como instrumento para garantir e concretizar valores de índole constitucional no caso concreto” .
Processo Penal e Prisão Cautelar
Destaca-se que próprio processo penal tem natureza vexatória, tornando-se, ele mesmo, numa pena. O cidadão que publicamente responde a imputação já é tido, equivocadamente, pela sociedade, como culpado.
Ora, se o processo, por si só, é estigmatizante, como bem afirmou Lopes Jr., “o imputado (...) pode estar livre do cárcere, mas não do estigma e da angustia” , o que dizer do imputado que está cautelarmente preso? Por óbvio que sua situação se agrava quando ele está diante de uma prisão cautelar. Como preleciona Lopes Jr., a prisão cautelar é uma “violência” e em trecho posterior, “uma prisão cautelar conduz a inexorável bancarrota do imputado e seus familiares”.
Se a pena, segundo Carrara, é “o mal que a autoridade pública inflige a um culpado em razão de delito por ele praticado” . Muito mais aviltante é a prisão cautelar. Não sem motivo que Hobbes citado por Ferrajoli afirmou que a prisão processual é “um ato de hostilidade” e Voltere afirmou que “o modo pelo qual em muitos Estados se prende cautelarmente um homem assemelha-se muito a um assalto de bandidos”
Na legislação brasileira a prisão antes do trânsito e julgado da sentença está prevista constitucionalmente e regulada pela legislação processual pátria.
O termo prisão “designa a privação de liberdade do indivíduo, por motivo lícito ou por ordem legal, mediante clausura” . Tendo como marco diferenciador a sentença final condenatória, a prisão tem duas modalidades: prisão-pena e prisão sem pena.
A prisão cautelar é espécie de prisão sem pena. Tendo natureza de cautela é meio para a realização de um fim, não podendo ser um fim em si mesmo. Não pode servir como punição ou prevenção de criminalidade, sob risco de transmudar sua natureza jurídica para prisão pena, o que atingiria o princípio da presunção de inocência.
O processo penal brasileiro prevê cinco formas de prisão antes do trânsito em julgado da sentença, a saber: 1) prisão preventiva (art. 311 a 316 do CPP); 2) Prisão em flagrante (art. 301 a 310 do CPP); 3) prisão temporária (Lei 7.960/1989); 4) prisão de corrente de pronúncia; 5) prisão por condenação recorrível.
O Princípio da Proporcionalidade como Requisito de Constitucionalidade da Prisão Cautelar
Tendo o Estado feito a opção de instituir o instituto da prisão cautelar, deve rodeá-lo de limitações para que o aplicador da lei não abuse do poder de cautela e fira os núcleos de diversos direitos e garantias fundamentais.
Por outro lado, o aplicador tem que, obrigatoriamente, ao fazer o exame da necessidade, ou não, da prisão cautelar, no caso concreto, fazer uma leitura constitucional para verificação se o ato de restrição de liberdade, respeita o conteúdo mínimo das garantias fundamentais. Nesse sentido o pensamento de D’Urso:
A norma que permite a invasão a esses direitos individuais deve ser interpretada. O caráter concretizante da hermenêutica constitucional, bem como do processo penal na efetivação da justiça material, que alia princípios constitucionais de caráter normativo à realidade, demanda do juiz criminal nas suas decisões uma interpretação construtiva da Lei para que, nos conflitos e nas restrições a direitos fundamentais permaneça intocado o núcleo essencial desses direitos, qual seja, a dignidade humana.
Fábio Delmanto informa que o marco histórico da necessidade de impor limites ao poder estatal de restringir a liberdade do indivíduo, antes do trânsito em julgado, foi a morte do Dr. Hoffle em 1925, conhecido político, preso cautelarmente, que causou grande polêmica na Alemanha. Informa ainda que “a justificação dogmática da proporcionalidade somente se fixou durante a Segunda Guerra Mundial”, quando se tornou corrente a idéia que as normas processuais deviam ser limitadas pelas normas constitucionais e seus valores.
A Como já dito a proporcionalidade tem como elementos, a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. Não é possível reduzir seu conteúdo ao mero exame da proporcionalidade em sentido estrito (ponderação), como, aparentemente pretendeu Pacelli , no que pese ser um avanço, tendo em vista que muitos aplicadores desprezam totalmente a garantia da proporcionalidade.
Em se tratando de prisão cautelar o interprete deve, diante do caso concreto, analisar os pressupostos e requisitos daquela espécie de prisão (por exemplo a prisão preventiva). Após verificar que estão presentes os pressupostos e um dos requisitos deve utilizar a proporcionalidade e seus sub-princípios, ou elementos, antes de decretar a prisão. Deve, portanto, diante do caso concreto perguntar se: 1) Qual o fim pretendido? Com o meio escolhido (prisão cautelar) alcançarei ao fim pretendido? 2) Há outro meio (medidas cautelares substitutivas ) que não a prisão cautelar para se chegar ao mesmo fim? 3) O fim a ser alcançado é tão importante que justifica a restrição a liberdade?
Ao verificar que qualquer dos elementos da proporcionalidade não foi satisfeito não deve decretar a prisão cautelar. E caso, já haja prisão cautelar, deve revogá-la, sob pena em ambos os casos de ferir garantias fundamentais, e, por conseguinte, de tomar uma decisão inconstitucional. Nessa linha de pensamento, conclui-se com a lição de Fábio Delmanto:
A proporcionalidade constitui, sem dúvida, um dos princípios mais importantes para o tema em estudo, posto que, ao denunciar a eventual desproporcionalidade da prisão provisória no caso concreto (seja por desnecessidade, inadequação ou mesmo desproporcionalidade da medida em relação à pena previsivelmente aplicada), exige seja afastada ou mesmo evitada (...).
O que se propõe é avançar, e tomar a proporcionalidade como “importantíssima ferramenta processual para evitar abusos na aplicação das medidas restritivas de liberdade do acusado, que, antes de tudo, deve ser considerado presumivelmente inocente”.
Conclusão
A prisão cautelar é extremamente aviltante. Primeiro porque se corre o risco de encarcerar um inocente, o que por si só deveria reduzir ao máximo sua aplicação. Segundo porque, como toda prisão, afeta vários bens jurídicos do indivíduo e vários aspectos de sua vida.
Seria infantil acreditar que a prisão seja provisória ou prisão pena, afeta somente a liberdade do indivíduo. A prisão afeta a honra, a família, a carreira, a auto-estima, a integridade física e psíquica do preso, afetando, por conseguinte, a garantia basilar da dignidade da pessoa humana.
Não se deve esquecer que a prisão cautelar é meio para a realização de um fim, não podendo ser um fim em si mesmo. Não pode servir como punição ou prevenção de criminalidade, sob risco de transmudar sua natureza jurídica para prisão pena, o que atingiria o princípio da presunção de inocência.
Não é difícil verificar no dia-a-dia forense, prisões sendo decretada de forma automática, ou pior, para satisfazer anseios midiáticos, na maioria das vezes sem fundamentação idônea, sem natureza de cautelar, mas verdadeiras antecipações de pena.
No atual estado de evolução do pensamento científico é impossível que se continue aplicando as regras processuais penais restritivas de liberdade, sem levar em conta os princípios, as regras e os postulados constitucionais, expressos ou implícitos, e seus valores – de maneira específica da garantia fundamental da proporcionalidade - o que levaria a interpretação dos textos legais aos velhos moldes do positivismo e da escola exegética.
Para que as decisões sejam válidas sob a ótica constitucional, é imperativo que o aplicador, antes de restringir qualquer garantia fundamental para se atingir determinado fim, faça uma avaliação criteriosa, uma releitura das antigas regras processuais, pelas lentes da proporcionalidade, extraindo a norma que regulará cada caso em concreto.
Em se tratando de restrição de liberdade antes do trânsito em julgado – prisão cautelar - a proporcionalidade - e seus subprincípios, ou elementos, a saber: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito – permite que o intérprete faça um juízo da real necessidade da prisão. Ele deve perguntar se: 1) Qual o fim pretendido? Com o meio escolhido (prisão cautelar) alcançarei ao fim pretendido? 2) Há outro meio (medidas cautelares substitutivas) que não a prisão cautelar para se chegar ao mesmo fim? 3) O fim a ser alcançado é tão importante que justifica a restrição a liberdade?
O aplicador da Lei (ou o intérprete) verifique a validade dos requisitos das prisões cautelares através da proporcionalidade. E, utilize a proporcionalidade (seus subprincípios) como requisito constitucional ao decretar ou manter a prisão cautelar.