Estou trabalhando em mais um livro. O título será:
Advogando no Tribunal do Júri. Terá duas partes.
A primeira parte tratará de noções básicas do
procedimento do Júri, desde a fase inicial até a fase recursal.
A segunda parte tratará de casos baseados em fatos
reais. Claro que, nomes, cidades, alguns detalhes serão modificados, omitidos
ou acrescentados para não expor ninguém.
Para atiçar a curiosidade segue abaixo um dos casos:
UM CLIENTE DIFÍCIL
Não
faz muitos anos, fui convidado por um grande amigo para fazer um júri numa
pequena cidade do interior de Pernambuco. Ele fora contratado pela família do
réu para fazer a defesa num crime de homicídio. O trabalho dele compreendia
toda a parte escrita e as audiências, mas deixava de fora o Júri. É que este colega
advogado não gostava de fazer a defesa no Júri. Ele se achava muito bom
escrevendo, razoável nas audiências, mas não gostava da batalha do Júri.
Portanto, ele me convidou para uma parceria.
Mas,
vamos voltar um pouquinho no tempo. Quando ele foi contratado o réu estava
preso. Ele fez muitos pedidos de liberdade ao juiz da causa, todos sem sucesso.
O réu ficou preso durante todo o processo, aproximadamente dois anos.
Processo
com réu preso não é fácil. A pressão familiar é enorme. Ligações quase todos os
dias. Todo mundo liga. Todo mundo pergunta a mesma coisa: quando ele vai sair
da prisão? Uma profissão de cartomantes esta a da advocacia criminal. Logo no
primeiro contato, o cliente quer saber se vai ser denunciado, ou não; se vai
ser preso, ou não; quanto tempo ficará preso; se vai ser
absolvido ou condenado; qual a quantidade de pena, em caso de condenação. Ah
se tivéssemos uma bola de cristal!
Todo
o esforço para conseguir a liberdade foi em vão. O crime chocou a pacata cidade
do interior de Pernambuco. Nenhum Juiz ou Desembargador iria dar-lhe a
liberdade de volta. E quando o réu é
pobre pouco adianta entrar com um habeas corpus no Superior Tribunal de Justiça
em Brasília. Sem dinheiro para custear a passagem do advogado para que ele
trate pessoalmente do caso com o Ministro relator, sem dinheiro para que o
defensor entregue os memoriais aos Ministros e faça a sustentação oral, o
habeas corpus demorará, por vezes, anos para ser julgado.
Eu
me lembro de um caso peculiar que, mesmo sendo meu cliente pobre, como não
tínhamos mais alternativas, resolvi arriscar um habeas corpus no STJ. Eu já
tinha feito inúmeros pedidos para o juiz de primeiro grau, que negou
peremptoriamente todos os meus pedidos. Na última negativa, ele me chamou e
disse: “Doutor eu não vou soltar seu cliente, não perca mais seu tempo fazendo
pedidos, se quiser vá ao tribunal de Justiça”. Foi o que fiz. Bati na porta do
Tribunal de Justiça pelo menos duas vezes. Mas, as respostas foram as mesmas:
NÃO!!!
Pois
bem como estava dizendo, resolvi entrar com um habeas corpus no STJ. Estudei o
caso novamente, estudei a jurisprudência do STJ. Fiz o melhor trabalho que
poderia fazer. Enviei pelos correios a petição para Brasília. Ainda não tínhamos
o processo eletrônico, então enviávamos a petição para a sala dos advogados em
Brasília ou para algum colega que protocolava o habeas corpus. Há dez anos não
tínhamos as restrições que temos hoje. Fazíamos habeas corpus substitutivos.
Hoje temos que fazer recurso em habeas corpus, o que torna o processamento do
habeas corpus mais lento ainda. Se há dez anos o habeas corpus era um remédio
amargo, hoje, confesso, que só impetro um habeas corpus em último caso.
Enviei
o habeas corpus e esperei o processamento e julgamento. Durante meses ficava
olhando no site do STJ, mas simplesmente ele não andava. Ainda fiz algumas
ligações, mas sem resultado. O tempo passou. Voltei a insistir com o juiz de
primeiro grau que continuou negando os pedidos de liberdade.
Certo
dia, resolvi visitar meu cliente na prisão, fazia uns três meses que não tinha
ido visitá-lo, talvez por não ter novidades, talvez por uma certa vergonha, não
sei. Quando cheguei ao presídio e disse seu nome, não o encontraram. Fiquei
preocupado! Fui ao prontuário e lá fui informado que ele havia sido solto,
fazia duas semanas. Voltei ao escritório e fui olhar o habaes corpus e, para
minha surpresa, ele havia sido julgado fazia quatro semanas. O Superior
Tribunal de Justiça havia reconhecido que a prisão era ilegal - um ano e dois
meses após a impetração, dois anos e dois meses depois que meu cliente fora
preso - ordenando a imediata soltura do paciente.
Mas,
voltemos ao caso do meu colega, a cada pedido de liberdade negado a pressão
aumentava, mas nada adiantava. Foram meses de decepção e de muitas explicações.
Profissão de cientistas esta a da advocacia criminal. Você tem que explicar o
inexplicável. Como fazer alguém entender que João, por exemplo, foi solto após
três meses preso, sendo réu confesso do homicídio e seu cliente está preso há
quase dois anos, tendo negado o fato? Como explicar que depois de 500 dias
preso, sem julgamento, não há excesso de prazo da prisão? Ah se nossa profissão
fosse uma ciência exata, em que dois mais dois sempre é, e sempre será, quatro,
em qualquer lugar e em qualquer tempo.
No
dia da audiência, ele me contou que as coisas, que já não estavam tão boas,
pioraram. É como se diz: nada pode estar tão ruim, que não possa ficar pior.
Ele me disse que o cliente fora reconhecido, os motivos do crime foram
esclarecidos, mas nada de crueldade tinha sido dito, pelo menos até agora. Nem
o Promotor havia pedido a condenação por crueldade. A denúncia pedia a
condenação de 12 a 30 anos pelo crime de homicídio cometido por motivo fútil.
Mas,
como tudo pode ficar pior, veio o interrogatório. O juiz perguntou ao réu onde
ele estava no dia do fato. Ele respondeu que estava no lugar do crime, pois
tinha cometido o crime. Então o juiz perguntou se era verdadeira a acusação. O
réu respondeu que sim (de fato, nunca negara). O juiz perguntou como se deu o
crime. O réu explicou tudo em seus pormenores.
Ele
havia discutido na manhã daquele dia com a vítima. Ambos trocaram insultos,
empurrões e ameaças. Segundo a promotoria, tudo por causa de um litro de
cachaça. Depois da confusão ele foi para casa. No fim da tarde, saiu novamente,
mas desta vez levou uma arma consigo. No caminho encontrou um amigo que lhe
convidou para tomar uma cachaça. Veja como são as coisas um amigo que convide o
cidadão para ir para uma Igreja, o cidadão não encontra, mas para tomar
cachaça… Pois bem, no bar, adivinhe quem ele encontrou?!? Já viu no que deu.
Cinco tiros: braço, rosto, pescoço, tórax. Tinha perfuração em todo lugar. A
vítima saiu de onde estava e foi ao encontro do réu, mas antes de chegar muito
perto foi alvejada e morta.
Até
aqui não tinha novidade, tudo estava nos laudos e nos depoimentos das
testemunhas. Agora vem a bomba! O réu, do nada, narrou como foi a sequência dos
tiros: Doutor dei um tiro certeiro que pegou no pescoço, o cabra já caiu no
chão, com a mão no pescoço. Era sangue por todo lado. Eu me aproximei e
descarreguei a arma. Pronto, pior impossível, foi suficiente para o Promotor
pedir para acrescentar à denúncia a crueldade, pelo número excessivo e
desnecessário de tiros.
Meu
colega redigiu uma excelente peça de defesa, pedindo que não fossem acatadas as
qualificadoras da futilidade e da crueldade. Mais uma derrota! O réu fora
pronunciado por homicídio duplamente qualificado. Ele pensou em recorrer, mas
resolveu pedir minha opinião. Veja bem, eu disse, você tem um cliente preso há
dois anos. Uma pressão enorme da família. O recurso vai demorar pelo menos seis
meses. O réu vai continuar preso, mais pressão. Dificilmente, neste caso, o
Tribunal de Justiça (órgão revisor das decisões dos juízes de primeira
instância) vai modificar a decisão e retirar as qualificadoras. Em regra se
entende que o Júri é quem deve decidir se existem ou não as qualificadoras.
Então é melhor tentar a sorte no Júri.
E
veja, se os jurados acatassem a tese da inexistência das qualificadoras, o
crime seria o de homicídio simples cuja pena é de seis a vinte anos. E, mais,
como o crime de homicídio simples não é hediondo (salvo quando feito por grupo
de extermínio), a progressão de regime se dá com o cumprimento de um sexto da
pena. Ou seja, se ele pegasse até doze anos, já poderia sair do regime fechado
para o semiaberto, pois já estava preso há mais de dois anos. E, no pior das
hipóteses, o cliente teria uma definição. Ele concordou, com uma ressalva: eu teria que fazer o Júri com ele.
Pois
bem, as semanas que antecederam o júri foram de preparação e ansiedade. Estudo
e ansiedade perseguem o advogado a vida toda. O dia do Júri chegou, eu havia
conversado com o cliente uma única vez. Ele chegou algemado, sentou num canto
do salão do Júri. Pedi aos policiais que retirassem a algema, no que fui
prontamente atendido. Conversei com nosso cliente. Bem, não foi um diálogo, foi
mais para um monólogo. Eu falava e ele balançava a cabeça, quando eu insistia
muito em ouvir uma resposta, ela era monossilábica: SIM ou NÃO.
Naquela
pequena entrevista eu perguntei várias vezes qual teria sido o motivo do crime.
Ele simplesmente não respondia. Perguntei o motivo dos cinco disparos. Nenhuma
resposta. Então expliquei que a acusação estava pedindo a condenação dele por
homicídio qualificado por motivo fútil e por crueldade, ou seja, em palavras
mais simples possíveis para ele eu disse que o promotor iria dizer que ele
matou por causa de um litro de cachaça e que ele disparou muitas vezes contra a
vítima e de forma desnecessária, fazendo com que ela sofresse para morrer.
Por
outro lado, nós estávamos afirmando que ele matou para não morrer e que a
quantidade de disparos, no momento do medo, da ansiedade, do turbilhão de
sentimentos não pode ser medido, havendo no máximo um excesso, nunca uma
crueldade. Terminei a entrevista e fomos ao Júri. Como não havia testemunhas
para serem ouvidas em plenário, passamos ao interrogatório.
O
juiz começou a fazer as perguntas e ele estava respondendo - do jeito dele,
meio monossilábico, mas estava - e ele estava indo razoavelmente bem, pelo
menos não tinha dito nada que prejudicasse a defesa dele. Quando veio a
esperada pergunta: Por que o senhor matou a vítima? Então ele soltou a pérola
do dia: “Doutor o cidadão me roubou um litro de cachaça e depois ainda veio
querer confusão”. Eu quase baixei a cabeça, mas o advogado tem que assistir
tudo de forma fria e tranquila, mesmo que por dentro esteja a ponto de ter um
colapso.
Bem,
como o que está ruim pode piorar, o juiz fez a outra pergunta: Como se deu o
crime? Ele então fez o favor de repetir em detalhes o que já havia dito no
interrogatório durante a instrução, explicou golpe por golpe. Parecia que os
jurados estavam vendo o filme. Agora eu tinha chagado a conclusão de que as
coisas estavam tão ruins, que meu maior consolo é que elas só poderiam
melhorar.
O
promotor ficou com a faca e o queijo na mão. O maior acusador do caso, a melhor
testemunha de acusação do processo era o nosso cliente. Ele, para além de
contar os fatos, caiu na besteira de interpretá-los. Logo ele, que foi tão
monossilábico comigo. O promotor fez uma acusação excelente. Narrou todos os
detalhes e provou tudo com a confissão do réu. Ele mal leu os depoimentos das
testemunhas. Ele pegou o interrogatório e provou cada ponto de sua
argumentação. Ao fim de sua fala, fiquei com vontade de levantar a
mão e dizer que também concordava com a acusação. A situação estava tão ruim
que meu colega me disse: E agora, o que você vai dizer? Eu estava me fazendo a
mesma pergunta.
Chegou
a minha vez, agora era a vez de a defesa falar. Chegara o momento esperado, o
momento de colocar tudo o que foi estudado e aprendido para fora. É um momento
mágico. É um momento de pura inspiração, sempre resultante de muita
transpiração, ou seja, de muito trabalho, de muita preparação prévia. Eu havia
tomado nota de todos os pontos da acusação. Agora era a hora. E como diz a
música: Quem sabe faz a hora não espera acontecer.
Na
minha mente estava tudo muito claro. Eu não podia mexer nos fatos, afinal os
fatos foram postos pelo meu cliente. Mas, eu podia interpretá-los. E para mim,
não havia futilidade, nem havia crueldade. Ele era culpado, até poderia ser
punido, mas não cometera o crime que o promotor havia sustentado. Então parti
para a construção da minha defesa e para o ataque aos argumentos da acusação.
Não se pode deixar de levar em conta o pensamento do grande professor e
advogado americano Alan Dershowitz: A melhor defesa é o ataque!
Ao
fim os jurados decidiram por maioria de votos (4x3) que o crime foi cometido
por motivo fútil e de forma cruel. O juiz então aplicou a pena de 15 anos de
reclusão no regime fechado.
Quando
tudo terminou, fui explicar tudo ao cliente e, principalmente, quais seriam os
próximos passos. Tudo explicado, perguntei-lhe se ele tinha entendido tudo, ao
que me respondeu, para variar, que sim. Perguntei-lhe se tinha alguma dúvida.
Adivinha o que ele me respondeu? Não! Até hoje não entendo por qual motivo ele
ficava tão falante nos interrogatórios e tão monossilábico nas entrevistas
comigo.
