Erguer as Mãos que Pendem

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segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012


A INCONSTITUCIONALIDADE DA GARANTIA DA OREDEM PÚBLICA COMO REQUISITO PARA DECRETO DA PRISÃO PREVENTIVA







Bruno Vasconcelos Barros



1 – Introdução. 2 – A Infringência ao Princípio da Legalidade-taxatividade. 3 – A Infringência ao Princípio da Presunção de Inocência. 4 – A Infringência ao Princípio da Proporcionalidade: Ilegitimidade do fim pretendido. 5 – Conclusão.





1.      INTRODUÇÃO



"Prisão é a privação da liberdade individual, mediante clausura. É a privação da liberdade individual de ir e vir" [1]. Esse conceito inclui a prisão pena e a prisão processual.

 A prisão pena é decorrente de uma sentença penal condenatória, imposta, portanto, ao culpado de um crime, com finalidade punitiva e preventiva. A prisão processual é decretada antes do trânsito e julgado da sentença, tendo como finalidade de instrumental, relacionada a higidez processual.

A prisão cautelar é espécie de prisão sem pena. Tendo natureza de cautela é meio para a realização de um fim, não podendo ser um fim em si mesmo. Não pode servir como punição ou prevenção de criminalidade, sob risco de transmudar sua natureza jurídica para prisão pena, o que atingiria o princípio da presunção de inocência. [2]

O processo penal brasileiro prevê três formas de prisão antes do trânsito em julgado da sentença, a saber: 1) prisão preventiva (art. 311 a 316 do CPP); 2) Prisão em flagrante (art. 301 a 310 do CPP); 3) prisão temporária (Lei 7.960/1989).

A Constituição Federal, a seu turno, estabeleceu como garantia fundamental no Art. 5º, LX, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;”. Não resta dúvida que ao limitar a prisão antes da sentença final condenatória, o constituinte permitiu sua ocorrência.

A prisão preventiva pode ser considerada a principal espécie da prisão processual. A Assertiva foi reforçada coma a entrada em vigor da Lei 12.403/2011, que terminou por reduzir as espécies de prisão processual em três, dando nova roupagem ao instituto da prisão preventiva, instituindo uma série de medidas substitutivas e outros requisitos para que a prisão processual seja decretada.

Um dos requisitos para o decreto ou manutenção da prisão preventiva, estabelecido no artigo 312 do Código de Processo Penal, é a garantia da ordem pública. Tal requisito tem sido alvo de críticas, seja pela sua abertura semântica, seja por ferir o princípio da presunção de inocência. Apesar das críticas, ele tem sido utilizado e o Supremo Tribunal Federal afastou sua inconstitucionalidade, afirmando que não fere, ao menos em abstrato, a presunção de inocência.

O texto pretende fazer uma análise do controvertido requisito, que de fato é uma finalidade a ser alcançada com a prisão preventiva, qual seja, que a ordem pública seja garantida. A ideia é fazer uma checagem do citado requisito em relação a três princípios garantidores da constituição: legalidade, presunção de inocência e proporcionalidade.



2 - A INFRINGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE-TAXATIVIDADE

O conteúdo do termo “garantia da ordem pública” é tão amplo, e tão ampla tem sido sua interpretação que se tornou uma ordem em branco dada pelo Legislador ao poder estatal contra a liberdade individual. Nesse diapasão Amilton Bueno de Carvalho afirmou que a garantia da ordem pública como requisito para a decretação da prisão preventiva é “tão amplo, aberto e carente de sólidos critérios de constatação, facilmente enquadrável em qualquer situação” [3].

Tem-se prendido preventivamente, com fundamento no requisito da garantia da ordem pública, para assegurar que o indivíduo não cometa novos crimes, seja porque ele é reincidente ou tem antecedentes criminais, seja porque solto terá os mesmos estímulos. Tem-se prendido para assegurar a integridade física da vítima e de seus familiares, inclusive já se tem prendido o indivíduo para assegurar sua própria integridade física. Tem-se prendido para acautelar o meio social e a tão propalada credibilidade da justiça. Tem-se prendido por causa do clamor público causado muito menos pelo crime e muito mais pela imprensa. Tem-se prendido pela gravidade do delito ou por sua forma de execução. [4]

Como se percebe nos exemplos citados acima, tudo cabe no requisito garantia da ordem pública. Esse requisito tem sido largamente utilizado, na verdade quando não se encontra motivos concretos para a prisão de um indivíduo basta lançar mão desse grande coringa e com um pouco de criatividade teremos uma prisão preventiva devidamente decretada e fundamentada.

Ora, em matéria penal, ou mesmo em questões de liberdades individuais não se pode ter uma lei com conteúdo indeterminado, norma vagas ferindo o princípio da legalidade, no aspecto da taxatividade. Nesse sentido a lição de Delmanto Jr.:



Com efeito, não há que se falar, tratando-se de restrições à liberdade do acusado, em um poder geral de cautela do órgão jurisdicional. Aliás, em consonância com esse entendimento, devem ser refutadas normas processuais penais vagas e imprecisas, que dada a sua demasiada amplitude, ofendem a garantia do devido processo legal e, também, o verdadeiro e único sentido da própria garantia constitucional da estrita legalidade, eixos de nosso Estado Democrático de Direito.



 Aury Lopes Júnior, no mesmo sentido, mas por uma argumentação distinta leciona que em matéria de processo penal que importe em aumento ou diminuição de direitos ou garantias do acusado não se pode deixar de aplicar os institutos, por exemplo, da retroatividade de lei mais benigna e da legalidade. Ele cita Juarez Cirino dos Santos, no sentido de que: 1) “o primado do direito penal substancial determina a extensão das garantias do princípio da legalidade ao subsistema de imputação (...), porque a coerção processual é a própria realização da coação punitiva”[5]; 2) “o gênero lei penal abrange as espécies lei penal material e lei penal processual, regidas pelo mesmo princípio fundamental”[6].

Ora, sendo assim, não se pode negar que os requisitos para que se decrete uma prisão processual devem respeitar o princípio da legalidade com todos os seus corolários, tais como: anterioridade, taxatividade, proibição de analogia. Ao tratar especificamente do princípio da legalidade e da garantia da ordem pública e da ordem econômica, Fábio Delmanto disse o seguinte:



As expressões “ordem pública” e “ordem econômica” são extremamente abertas, possibilitando que se encontrem na jurisprudência os mais variados significados, o que é incompatível com o princípio da legalidade (e da taxatividade) das medidas restritivas da liberdade do acusado.



O requisito da garantia da ordem pública: ele é inconstitucional por ferir o princípio da legalidade. Nesse sentido Fábio Delmanto, ao tratar do princípio da legalidade e seus desdobramentos em relação as medidas cautelares, afirmou que “assim como a lei penal deve prever taxativamente as condutas puníveis, deve a lei processual penal também prever de igual forma as hipóteses em que poderá haver restrição prévia da liberdade do acusado”[7]





3 - A INFRINGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

A presunção de inocência foi consagrada na Declaração dos Direitos do Homem em 1789[8]. No Brasil, o princípio da presunção de inocência está posto no rol dos direitos e garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988: Art. 5º, LVII – “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença final condenatória”.

Tem-se discutido se o princípio é da presunção de inocência ou se o princípio é da não culpabilidade. Para Delmanto independentemente da escolha entre uma expressão e outra, “no Brasil de hoje vigoram tanto a garantia de não consideração de culpabilidade quanto da presunção de inocência” [9].

Vegas Torres[10] analisando o princípio da presunção de inocência, conforme insculpido na Declaração dos Direitos do Homem, extraiu algumas características:



a)             É um princípio fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal (...).

b)            É um postulado que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo penal, segundo o qual haveria de partir-se da ideia de que ele é inocente e, portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos durante o processo (...).

c)             È uma regra (...). A prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação, impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não suficientemente demonstrada.



O princípio da presunção de inocência tem dois aspectos: a) Regra Probatória: Ônus da Prova da Acusação. b) Regra de Tratamento[11]: 1) Excluir ou restringir ao máximo a utilização da prisão cautelar. 2) Absolvição em caso de dúvida.

Com o advento da Constituição de 1988 e a positivação do princípio da presunção de inocência, a prisão processual, mais uma vez, foi colocada em cheque. Teria sido a prisão processual recepcionada pela Constituição de 1988? A resposta, que tem sido aceita pela maioria, foi um sonoro sim. O Superior Tribunal de Justiça emitiu a Súmula 9: “a prisão cautelar não fere o princípio da presunção de inocência”. O Supremo Tribunal Federal também se manifestou sobre o tema, concluindo que há compatibilidade entre a prisão processual e o princípio da presunção de inocência. [12]

Nessa linha, Canotilho pondera sobre a necessidade de não interpretar o princípio da presunção de inocência com extremo rigor semântico, sob pena de inviabilizar toda espécie de medida cautelar e, além disso, impossibilitar qualquer suspeita em relação ao indivíduo, o que acarretaria a inviabilidade de investigações, produção de prova e o próprio processo penal. [13]

Mas tal posicionamento não é unânime. Kato, por exemplo, afirma, peremptoriamente, que o instituto da prisão processual, como hoje é concebida no sistema pátrio, é incompatível com o princípio da presunção de inocência. Para ela o único meio admissível é utilizar a prisão processual unicamente como medida “cautelar instrumental para assegurar a efetividade da obtenção da prestação jurisdicional” [14], mas mesmo nos estreitos limites da cautela instrumental, o que deixaria de fora uma serie de possibilidades aceitas no nosso sistema[15], o princípio da presunção da inocência seria violado. [16]

Ferrajoli, no mesmo sentido, afirma, inclusive, que entende ser uma utopia a abolição do instituto da prisão processual, mas diz que seria importante a existência de um provimento condenatório, ao menos de primeiro grau, para que houvesse um decreto de prisão antes do trânsito em julgado. Citando Manzini ele argui: “E, afinal, de que inocência se trata? (...) e então por que não se aplica o princípio com todas as suas consequências lógicas? Por que não abolir a prisão preventiva?”. [17]

Olhando sob outro prisma, se responder a um processo crime traz uma nuvem de indignidade sobre o individuo, responder um processo crime preso o marcará, sem dramas, para o resto da vida. Como lembrou Delmanto Jr. Citando Paulo José da Costa Jr.:



Reconduzido o prisioneiro à liberdade, as marcas da culpabilidade permanecem indeléveis, ainda que absolvido. Não raro se pergunta: será ele realmente inocente? E o cidadão honrado, no instante em que é levado a prisão preventivamente, fica marcado para sempre com a mácula da desonra, com o ferro escaldante da improbidade, que permanece latente em sua reputação. Murmura-se, a boca pequena: ‘É, se foi para as grades, é porque algo havia’.



Ou seja, é preciso ponderar que o fato, por si só, de ter contra si um decreto prisional, inverte a presunção de inocência social. Se levarmos em conta que, por exemplo, nos crimes dolosos contra a vida o indivíduo é julgado por cidadãos comuns, a presunção de inocência jurídica pode ser invertida para presunção de culpabilidade: se respondeu o processo preso, deve ser culpado.

Um dos principais argumentos utilizados no discurso que decreta a prisão preventiva com base na garantia da ordem pública, é que a prisão é necessária, pois se o acusado permanecer solto voltará a cometer novos crimes, ou encontrará os mesmos estímulos para novamente cometê-los.

Outro argumento é que é necessário garantir a ordem pública prendendo aqueles que possuem antecedentes criminais, pois eles soltos provavelmente continuaram a cometer crimes.

Ora, decretar a prisão preventiva de um acusado por ele ter antecedentes ou por que ele pode voltar a cometer crimes, nada mais é do que assumir durante as investigações ou no curso do processo ele é culpado, antecipadamente culpado, ferindo a presunção de inocência. Nesse sentido Delmanto Júnior afirma que:



Não há como negar que a decretação de prisão preventiva com fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos baseia-se, sobretudo, em dupla presunção de culpabilidade: a primeira, de que o imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para consumir o delito tentado.[18]





E como bem disse Ferrajoli, tratando da presunção de inocência e a falta de instrumentalidade da prisão processual:



A perversão do instituto (...) foi a sua mutação de instrumento exclusivamente processual destinado à “estrita necessidade instrutória para instrumento de prevenção e defesa social, motivado pelas necessidades de impedir que o imputado cometa outros crimes. É claro que um argumento como esse, fazendo pesar sobre o imputado uma presunção de periculosidade baseada unicamente na suspeita da conduta delitiva, equivale de fato a uma presunção de culpabilidade.[19]





Ademais, ao decretar a prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública, para que não volte a cometer crimes, significa decretar a prisão preventiva como antecipação de pena, como meio de defesa social, não tendo nenhum traço de cautelaridade instrumental.





4 - INFRINGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE: Ilegitimidade do fim pretendido

A proporcionalidade que aqui tratamos é composta por três subprincípios ou elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.[20]

Para se verificar se uma medida que restringe direitos fundamentais é proporcional, deve ser feito o exame da licitude do fim ou dos fins pretendidos com a medida restritiva de direitos fundamentais. É que se depreende da lição de Demitri Demoulis:



A primeira tarefa do operador do direito ao se valer do critério da proporcionalidade como instrumento de controle de constitucionalidade de intervenções estatais em direitos fundamentais constitui-se, portanto, em um procedimento duplo, qual seja: (a) interpretar e definir o real propósito da autoridade estatal (ou demais agentes no exercício de funções estatais ou equivalentes) e (b) verificar se se trata de um propósito lícito. [21]



Depois de verificar que o fim é lícito, deve ser feito o exame dos seus elementos ou subprincípios. No exame dos elementos ou subprincípio, no dizer de Alexy, “o que se indaga é, na verdade, se as máximas parciais foram satisfeitas ou não, e sua não satisfação tem como consequência uma ilegalidade”. [22]

D’Urso[23] os denomina de tríplice dimensão do princípio da proporcionalidade, descrevendo-os como princípios parciais da proporcionalidade. Já Bonfim atribui aos subprincípios da proporcionalidade a terminologia de “teste alemão” [24], os quais devem ser concomitantes e sucessivos quando da aplicação do princípio  da proporcionalidade.

De toda sorte, e por meio do exame dos subprincípios da proporcionalidade que se chega a conclusão se uma medida que quer promover um determinado fim é proporcional.

O exame é feito em três fases e deve ser feito na seguinte e exata ordem: Primeiro verifica-se se à medida que se pretende tomar alcançará o fim pretendido (adequação). Depois se examina se não há um meio menos gravoso para se conseguir o mesmo fim (necessidade). Por fim, deve-se verificar se é razoável exigir a restrição imposta pela medida, diante do fim visado.

Ora, o aparente rigor metodológico do exame é decorrência lógica dos três elementos da proporcionalidade. Se com a medida pretendida não se chegar ao fim visado, não há de se perguntar se existe ou não outra medida menos gravosa para se alcançar o fim. E, somente depois de ter chegado à conclusão de qual medida se pode tomar, diante das circunstâncias fáticas, é que se fará a ponderação entre o meio (a medida) e o fim.

Como visto o exame da proporcionalidade implica na existência de um meio e um fim, sendo esse um dos traços diferenciadores estabelecido por Ávila[25], quando distinguiu proporcionalidade, de razoabilidade de proibição de excesso. Nesse mesmo sentido Bonavides afirmou que o princípio da proporcionalidade pretende instituir “a relação entre fim e meio, confrontando o fim e o fundamento da intervenção com os efeitos desta para que se torne possível o controle do excesso” [26].

O exame da proporcionalidade examina, principalmente, no que tange ao subprincípio da adequação, se a medida contribui para que se chegue a um fim lícito. Não se pode dizer ser proporcional a intervenção em direito fundamental que tenha o meio ou o fim ilícitos. Não sem razão Dimoulis afirma que, “para perseguir um propósito lícito, o estado não pode se valer de meios ilícitos” [27].

Luiz Flávio Gomes identifica no exame da adequação (idoneidade) a verificação se o fim pretendido é legítimo, afirmando que a medida não é adequada “quando se pretende alcançar fins incompatíveis ou ilegítimos (como a condenação antecipada do réu, a sua prisão para garantir a sua própria segurança etc.)”[28]. Nesse sentido afirma Pacheco, inclusive atribuindo ao exame da adequação o exame do fim pretendido pelo Estado (Legislativo, Executivo ou Judiciário). Diz ele que o primeiro passo no exame da adequação é verificar qual ou quais fins se deseja alcançar com determinada medida. Depois, verifica-se se o fim é constitucionalmente legítimo. Por fim, verifica-se se o meio escolhido contribui para a obtenção do fim [29], pois nas palavras de Nicolas Gonzales-Cuellar, “as restrições aos direitos e liberdades somente se justificam se orientadas a um fim legítimo, de forma que, se o fim for ilegítimo ou irrelevante, não se faz necessário descer nem mesmo ao estudo dos meios”[30].

Para que o fim seja legítimo não precisa está constitucionalmente previsto, bastando que não seja por ela proibido. Na lição de Pacheco: “não há obrigatoriedade de se perseguirem fins explícita ou implicitamente previstos na Constituição, bastando que não se persiga um fim que a Constituição veda” [31]. Contudo, Delmanto entende que “a melhor solução para verificar se os fins de determinada medida cautelar são ou não legítimos é a análise do Texto Constitucional, em especial dos princípios, direitos e garantias previstos” [32].

E qual seria a consequência de perseguir um propósito ilícito? “Propósitos ilícitos não podem ser perseguidos, configurando inconstitucionalidade já nessa primeira etapa do exame da proporcionalidade” [33].

Paulo Bonavides ao tratar do princípio da proporcionalidade, ensina que uma de suas virtudes é exatamente limitar o arbítrio estatal na sua ingerência sobre os direitos fundamentais, pois “transforma, enfim, o legislador num funcionário da Constituição” [34]. Porém, “quanto mais livre o legislador para estabelecer o fim de sua produção normativa, tanto mais fraca a eficácia do princípio da proporcionalidade” [35]

Scarance, por sua vez, na mesma linha de Delmanto, ao tratar dos pressupostos e requisitos da proporcionalidade, parece entender que os fins precisam estar previstos constitucionalmente ao afirmar que “a limitação a direito individual só tem razão de ser se tiver como objetivo efetivar valores relevantes do sistema constitucional”. [36]

É claro que, aqui está se tratando especificamente da legitimidade do fim, em si, sem compará-los a outros fins que o Estado deve promover e, que por vezes, podem estar previstos implícita ou explicitamente na Constituição. Esse exame comparativo entre os fins fica para a técnica da ponderação. Assim, por exemplo, o fim de garantir a ordem pública é legítimo, assim como o de preservação da liberdade.

Porém, quando o Legislador em norma infraconstitucional prevê a prisão processual para garantir a ordem pública ele busca um fim constitucionalmente permitido? Continuaria sendo um fim lícito? A resposta nos parece ser não.

Toda prisão antes da sentença penal condenatória deve ter uma finalidade cautelar instrumental do processo. Não podendo o Legislador confundir a finalidade da prisão pena (prevenção e retribuição), com a finalidade da prisão processual.Tratando da falta de característica da cautelaridade instrumental da garantia da ordem pública afirmou Gomes Filho que ela se relaciona com finalidades “que não se enquadram nas exigências de caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação de liberdade adotadas como medidas de defesa social”[37]. Nesse mesmo sentido Tourinho Filho Afirmou:



Quando se decreta a prisão preventiva como “garantia da ordem pública”, o encarceramento provisório não tem o menor caráter cautelar. É um rematado abuso de autoridade e uma indisfarçável ofensa a nossa Lei Magna, mesmo porque  expressão “ordem pública” diz tudo e não diz nada.[38]



Nessa linha de pensamento Aury Lopes Jr. afirma que é inconstitucional transformar uma atividade tipicamente de polícia – a garanti da ordem pública – em finalidade processual, por explícita falta de cautelaridade instrumental do processo da medida cautelar prisional.[39]

Ademais, a garantia da ordem pública tem se tornado um instrumento poderoso para saciar a opinião pública que ao julgar antecipadamente o acusado – com base nos dados informados pela mídia – demanda uma postura célere e contundente dos poderes constituídos, principalmente aqueles mais diretamente ligados a persecução criminal. Com razão Bauman, ao tratar do crime, da reação social e da necessidade de demonstração de força, ao estilo do direito penal simbólico e do processo penal de emergência, afirmou que:



A construção de novas prisões, a redação de novos estatutos que multiplicam as infrações puníveis com prisão e aumento das penas – todas essas medidas aumentam a popularidade dos governos, dando-lhes a imagem de severos, capazes, decididos e, acima de tudo, a de que fazem algo (...).[40]



E, exatamente, para satisfazer o clamor público ou midiático por justiça imediata e exemplar decreta-se a prisão preventiva. Como já bem observou Ferrajoli, “a presteza da pena desejada por Beccaria e Bentham foram substituídas pela imediação e pela infalibilidade da prisão preventiva” [41]. Ora, utilizar a prisão processual para antecipação célere da pena e satisfação da demanda social por punição, sob o pretenso requisito da garantia da ordem pública não é constitucionalmente permitido, pois fere desde a dignidade da pessoa humana até a presunção de inocência.

Portanto, não nos parece poder ser atribuído ao Poder Judiciário, por meio de medida cautelar prisional, a garantia da ordem pública, sendo ilegítima essa finalidade, ferindo o princípio constitucional da proporcionalidade.



5. CONCLUSÃO

No caso da garantia da ordem pública, existe uma série de desafios a serem suplantados para que a consideremos um fim constitucionalmente permitido. Vejamos:

Primeiro, a garantia da ordem pública, por ser fim que afeta a liberdade do cidadão está regulada pelo princípio constitucional da legalidade. A legalidade no aspecto taxatividade importa que os termos de uma norma devem ser claros, taxativos, de alta densidade semântica. O que, evidentemente não ocorre com o termo “ordem pública”.

O que é ordem pública? Quais as situações que a ordem pública precisa ser garantida? Como visto, qualquer circunstância pode ser considerada para indicar a necessidade de garantir a ordem pública.

Já se prendeu para garantir a ordem pública por causa da gravidade do delito, por causa da credibilidade da justiça, para evitar que o crime ocorra, ou volte a ocorrer, para salvaguardar a vítima das ações do suposto ofensor, para salvaguardar o suposto ofensor da vítima, por causa do clamor público (muitas vezes confundido com a exposição midiática do caso). Já se prendeu para que solto o acusado não tenha os mesmos estímulos e volte a praticar outros crimes. Já se prendeu pela periculosidade do agente, pois tem anotações na sua folha de antecedentes criminais. E as circunstâncias que se amoldam a necessidade de garantir a ordem pública se multiplicam a cada dia, e sem querer se extremista, tendem ao infinito.

A finalidade de garantir a ordem pública é, de fato, uma carta em branco dada pelo legislador ao magistrado, ferindo o princípio da legalidade (taxatividade), o que não é permitido pela Constituição.

Segundo, a finalidade garantir a ordem pública para a decretação da prisão processual, não raro fere o princípio da presunção de inocência, pois o discurso que fundamenta a decisão, não raro, passa pela admissão que o indivíduo preso cometeu o crime.

Terceiro, a finalidade garantir a ordem pública é categoria externa ao processo, não tendo viés de cautela processual instrumental, logo nada mais é do que antecipação de pena, ferindo o princípio da presunção de inocência.

Ora, dito o que foi dito, voltamos a questão da análise que pressupõe o exame da proporcionalidade: o exame da licitude fim perseguido. Se o fim perseguido tem que ser, ao menos, não proibido pela constituição, é possível assumir que a finalidade garantir a ordem pública, por meio de prisão processual, é constitucional? Pensamos que não. Todavia, mesmo que se considere que é possível afirmar, em abstrato, a legitimidade do fim “garantir a ordem pública”, será muito difícil no caso concreto, em um discurso racional e legítimo, demonstrar que o fim pretendido é lícito.

Portanto, fazendo uma checagem da garantia da ordem pública como requisito da prisão preventiva pelos princípios garantidores da legalidade, presunção de inocência e proporcionalidade, essa finalidade pretendida pelo legislador para a prisão processual não sobrevive a pecha da inconstitucionalidade.





[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 427. 3v.
[2] Vide nesse sentido Luiz Flávio Gomes, na obra: Prisão e Medidas Cautelares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 41: “Está decretado (pelo STF), no Brasil, o fim da execução provisória (antecipada) da pena (que ainda não transitou em julgado). Execução provisória, no processo penal, só se for em favor do réu (favor rei), nunca contra ele, tendo em vista sua presunção de inocência”.
[3] Apud TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 531. 3v.
[4] MIRABETE, Júlio Fabrini. Código de Processo Penal Interpretado. São Paulo: Atlas, 1997, p. 414.
[5] LOPES JR, Aury. Processo Penal e sua conformidade com a Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 204.
[6] LOPES JR, Aury. Processo Penal e sua conformidade com a Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 204.
[7] DELMANTO, Fábio. Medidas Substitutivas e Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 27.
[8] “Art. 9. Todo homem presume-se inocente enquanto não houver sido declarado culpado; por isso, se se considerar indispensável detê-lo, todo rigor que não seria necessário para a segurança de sua pessoa deve ser severamente punido pela lei”.
[9] DELMANTO, Fábio. Medidas Substitutivas e Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 23.
[10] VEGA TORRES apud LOPES Jr., Aury. Processo Penal e sua conformidade com a Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 180.
[11] Para aury Lopes Júnior o dever de tratamento tem duas dimensões: interna e externa. “Na dimensão interna, é um dever de tratamento imposto – primeiramente – ao juiz, determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu é inocente não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente a absolvição; ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso das prisões cautelares 9como prender alguém que não foi devidamente condenado?). Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Vide sua obra: Processo Penal e sua conformidade com a Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 182.
[12] Veja por exemplo, a seguinte ementa:

EMENTA: HABEAS CORPUS. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. EXTENSÃO DO BENEFÍCIO CONCEDIDO AO CO-RÉU. IMPOSSIBILIDADE. EXCESSO DE PRAZO. CONFIGURAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assim como a do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que as condições pessoais favoráveis, acaso existentes, não impedem a decretação da prisão preventiva do paciente, quando presentes os requisitos dela autorizadores. (HC 86.605, rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 10.03.2006; HC 82.904, rel. min. Ellen Gracie, DJ de 22.08.2003). Inexiste incompatibilidade entre o princípio da presunção de inocência e o instituto da prisão preventiva, podendo esta ser decretada quando presentes os requisitos autorizadores, estando caracterizada, portanto, sua necessidade (HC 70.486, rel. min. Moreira Alves; HC 80.830, rel. min. Maurício Corrêa; HC 84.639, rel. min. Joaquim Barbosa). Inaplicabilidade do art. 580 do Código de Processo Penal, tendo em vista que o decreto de prisão preventiva analisou expressamente a situação pessoal do paciente, afirmando sua periculosidade, o que não ocorreu em relação ao co-réu que teve a prisão revogada. Caracterizado o constrangimento ilegal consistente no excesso de prazo da prisão preventiva, que já ultrapassa três anos, sendo que, desde novembro de 2005, o processo não teve regular andamento, e sequer há certeza nos autos de que os réus foram devidamente intimados para requerer diligências, na forma do art. 499 do Código de Processo Penal. Ordem de habeas corpus concedida. (HC 88362 / SE – SERGIPE -
Relator(a):  Min. JOAQUIM BARBOSA - Julgamento:  24/10/2006 - Órgão Julgador:  Segunda Turma – STF. (http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=HC+84%2E639&base=baseAcordaos): Acesso em: 19.08.2011)
[13] CANOTILHO apud DELMANTO, Fábio. Medidas Substitutivas e Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 23.
[14] KATO, Maria Ignez Lanzellotti. A (Des) Razão da Prisão Provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 113.
[15] Por exemplo, as prisões para garantir a segurança social (garantia da ordem pública ou da ordem econômica).
[16] KATO, Maria Ignez Lanzellotti. A (Des) Razão da Prisão Provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 113.
[17]Apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 511.
[18] DELMANTO JÚNIOR. Roberto. As Modalidades de prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 179.
[19] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 509.
[20] Vide, por exemplo: ARAÚJO, Francisco Fernandes de. Princípio da Proporcionalidade – significado e aplicação prática. Campinas: editora Copola, 2002, p. 57; D´URSO, Flávia. Princípio Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 66: “princípios parciais ou subprincípios”.
[21] DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 191.
[22] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 117, nota de rodapé 84. Lembrando que Alexy trata os elementos adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito como máximas parciais, pois trata a proporcionalidade como uma máxima (uma regra máxima).
[23] D´URSO, Flávia. Princípio Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 66.
[24] BONFIM, Edilson Mongenout. Curso de Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 61.
[25] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 161.
[26] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 393.
[27] DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 192.
[28] GOMES, Luis Flávio; MARQUES, Ivan Luís. Prisão e Medidas Cautelares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 52.
[29] PACHECO, Denilson Feitosa. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Processual Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 153.
[30] Apud DELMANTO, Fábio. Medidas Substitutivas e Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 63.
[31] PACHECO, Denilson Feitosa. O Princípio da Proporcionalidade no Direito Processual Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 155.
[32] DELMANTO, Fábio. Medidas Substitutivas e Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 63.
[33]  DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 190.
[34] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 424.
[35] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 423.
[36] FERNADES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.52.
[37] Apud DELMANTO, Fábio. Medidas Substitutivas e Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 159, rodapé 106.
[38] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 532. 3v.
[39] Aury Lopes Jr. Apud SOUZA, Marcelo Ferreira de. Segurança Pública e Prisão Preventiva no Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 23.
[40] BAULMAN apud KATO, Maria Ignez Lanzellotti. A (Des) Razão da Prisão Provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 31.
[41] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 516. No mesmo sentido, vide Delmanto Jr., p.11: “Não temos dúvida de que, na prática, a prisão provisória assume aspectos de justiça sumária. É providência cômoda e, pela celeridade com que é decretável, traz à comunidade, como salientado, sensação de eficácia do sistema penal, de resposta jurisdicional rápida e severa, uma vez que a prisão é, antes de tudo, a maior dentre as várias humilhações que o processo penal pode impor a uma pessoa”.