A INCONSTITUCIONALIDADE DA GARANTIA DA
OREDEM PÚBLICA COMO REQUISITO PARA DECRETO DA PRISÃO PREVENTIVA
Bruno Vasconcelos
Barros
1 – Introdução. 2 – A Infringência ao Princípio da
Legalidade-taxatividade. 3 – A Infringência ao Princípio da Presunção de
Inocência. 4 – A Infringência ao Princípio da Proporcionalidade: Ilegitimidade
do fim pretendido. 5 – Conclusão.
1.
INTRODUÇÃO
"Prisão é a privação da liberdade individual, mediante
clausura. É a privação da liberdade individual de ir e vir" [1].
Esse conceito inclui a prisão pena e a prisão processual.
A prisão pena é decorrente
de uma sentença penal condenatória, imposta, portanto, ao culpado de um crime,
com finalidade punitiva e preventiva. A prisão processual é decretada antes do
trânsito e julgado da sentença, tendo como finalidade de instrumental,
relacionada a higidez processual.
A prisão cautelar é espécie de prisão sem pena. Tendo natureza de
cautela é meio para a realização de um fim, não podendo ser um fim em si mesmo.
Não pode servir como punição ou prevenção de criminalidade, sob risco de
transmudar sua natureza jurídica para prisão pena, o que atingiria o princípio
da presunção de inocência. [2]
O processo penal brasileiro prevê três formas de prisão antes do
trânsito em julgado da sentença, a saber: 1) prisão preventiva (art. 311 a 316
do CPP); 2) Prisão em flagrante (art. 301 a 310 do CPP); 3) prisão temporária
(Lei 7.960/1989).
A Constituição Federal, a seu turno, estabeleceu como garantia fundamental
no Art. 5º, LX, que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;”. Não
resta dúvida que ao limitar a prisão antes da sentença final condenatória, o
constituinte permitiu sua ocorrência.
A prisão preventiva pode ser considerada a principal espécie
da prisão processual. A Assertiva foi reforçada coma a entrada em vigor da Lei
12.403/2011, que terminou por reduzir as espécies de prisão processual em três,
dando nova roupagem ao instituto da prisão preventiva, instituindo uma série de
medidas substitutivas e outros requisitos para que a prisão processual seja
decretada.
Um dos requisitos para o decreto ou manutenção da prisão
preventiva, estabelecido no artigo 312 do Código de Processo Penal, é a
garantia da ordem pública. Tal requisito tem sido alvo de críticas, seja pela
sua abertura semântica, seja por ferir o princípio da presunção de inocência.
Apesar das críticas, ele tem sido utilizado e o Supremo Tribunal Federal
afastou sua inconstitucionalidade, afirmando que não fere, ao menos em
abstrato, a presunção de inocência.
O texto pretende fazer uma análise do controvertido requisito,
que de fato é uma finalidade a ser alcançada com a prisão preventiva, qual
seja, que a ordem pública seja garantida. A ideia é fazer uma checagem do
citado requisito em relação a três princípios garantidores da constituição:
legalidade, presunção de inocência e proporcionalidade.
2 - A INFRINGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE-TAXATIVIDADE
O conteúdo do termo “garantia da ordem pública” é tão amplo,
e tão ampla tem sido sua interpretação que se tornou uma ordem em branco dada
pelo Legislador ao poder estatal contra a liberdade individual. Nesse diapasão
Amilton Bueno de Carvalho afirmou que a garantia da ordem pública como
requisito para a decretação da prisão preventiva é “tão amplo, aberto e carente
de sólidos critérios de constatação, facilmente enquadrável em qualquer
situação” [3].
Tem-se prendido preventivamente, com fundamento no requisito
da garantia da ordem pública, para assegurar que o indivíduo não cometa novos
crimes, seja porque ele é reincidente ou tem antecedentes criminais, seja
porque solto terá os mesmos estímulos. Tem-se prendido para assegurar a
integridade física da vítima e de seus familiares, inclusive já se tem prendido
o indivíduo para assegurar sua própria integridade física. Tem-se prendido para
acautelar o meio social e a tão propalada credibilidade da justiça. Tem-se
prendido por causa do clamor público causado muito menos pelo crime e muito
mais pela imprensa. Tem-se prendido pela gravidade do delito ou por sua forma
de execução. [4]
Como se percebe nos exemplos citados acima, tudo cabe no
requisito garantia da ordem pública. Esse requisito tem sido largamente
utilizado, na verdade quando não se encontra motivos concretos para a prisão de
um indivíduo basta lançar mão desse grande coringa e com um pouco de
criatividade teremos uma prisão preventiva devidamente decretada e
fundamentada.
Ora, em matéria penal, ou mesmo em questões de liberdades
individuais não se pode ter uma lei com conteúdo indeterminado, norma vagas
ferindo o princípio da legalidade, no aspecto da taxatividade. Nesse sentido a
lição de Delmanto Jr.:
Com
efeito, não há que se falar, tratando-se de restrições à liberdade do acusado,
em um poder geral de cautela do órgão jurisdicional. Aliás, em consonância com
esse entendimento, devem ser refutadas normas processuais penais vagas e
imprecisas, que dada a sua demasiada amplitude, ofendem a garantia do devido
processo legal e, também, o verdadeiro e único sentido da própria garantia
constitucional da estrita legalidade, eixos de nosso Estado Democrático de
Direito.
Aury Lopes Júnior, no
mesmo sentido, mas por uma argumentação distinta leciona que em matéria de
processo penal que importe em aumento ou diminuição de direitos ou garantias do
acusado não se pode deixar de aplicar os institutos, por exemplo, da
retroatividade de lei mais benigna e da legalidade. Ele cita Juarez Cirino dos Santos,
no sentido de que: 1) “o primado do direito penal substancial determina a
extensão das garantias do princípio da legalidade ao subsistema de imputação
(...), porque a coerção processual é a própria realização da coação punitiva”[5];
2) “o gênero lei penal abrange as espécies lei penal material e lei penal
processual, regidas pelo mesmo princípio fundamental”[6].
Ora, sendo assim, não se pode negar que os requisitos para
que se decrete uma prisão processual devem respeitar o princípio da legalidade
com todos os seus corolários, tais como: anterioridade, taxatividade, proibição
de analogia. Ao tratar especificamente do princípio da legalidade e da garantia
da ordem pública e da ordem econômica, Fábio Delmanto disse o seguinte:
As expressões “ordem pública” e “ordem econômica” são
extremamente abertas, possibilitando que se encontrem na jurisprudência os mais
variados significados, o que é incompatível com o princípio da legalidade (e da
taxatividade) das medidas restritivas da liberdade do acusado.
O requisito da garantia da ordem pública: ele é
inconstitucional por ferir o princípio da legalidade. Nesse sentido Fábio
Delmanto, ao tratar do princípio da legalidade e seus desdobramentos em relação
as medidas cautelares, afirmou que “assim como a lei penal deve prever
taxativamente as condutas puníveis, deve a lei processual penal também prever
de igual forma as hipóteses em que poderá haver restrição prévia da liberdade
do acusado”[7]
3 - A INFRINGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
A presunção de inocência foi consagrada na Declaração dos
Direitos do Homem em 1789[8].
No Brasil, o princípio da presunção de inocência está posto no rol dos direitos
e garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988: Art. 5º, LVII –
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença final
condenatória”.
Tem-se discutido se o princípio é da presunção de inocência
ou se o princípio é da não culpabilidade. Para Delmanto independentemente da
escolha entre uma expressão e outra, “no Brasil de hoje vigoram tanto a
garantia de não consideração de culpabilidade quanto da presunção de inocência”
[9].
Vegas Torres[10]
analisando o princípio da presunção de inocência, conforme insculpido na
Declaração dos Direitos do Homem, extraiu algumas características:
a)
É um princípio
fundante, em torno do qual é construído todo o processo penal liberal (...).
b)
É um postulado
que está diretamente relacionado ao tratamento do imputado durante o processo
penal, segundo o qual haveria de partir-se da ideia de que ele é inocente e,
portanto, deve reduzir-se ao máximo as medidas que restrinjam seus direitos
durante o processo (...).
c)
È uma regra
(...). A prova completa da culpabilidade do fato é uma carga da acusação,
impondo-se a absolvição do imputado se a culpabilidade não suficientemente
demonstrada.
O princípio da presunção de inocência tem dois aspectos: a)
Regra Probatória: Ônus da Prova da Acusação. b) Regra de Tratamento[11]:
1) Excluir ou restringir ao máximo a utilização da prisão cautelar. 2)
Absolvição em caso de dúvida.
Com o advento da Constituição de 1988 e a positivação do
princípio da presunção de inocência, a prisão processual, mais uma vez, foi
colocada em cheque. Teria sido a prisão processual recepcionada pela
Constituição de 1988? A resposta, que tem sido aceita pela maioria, foi um
sonoro sim. O Superior Tribunal de Justiça emitiu a Súmula 9: “a prisão
cautelar não fere o princípio da presunção de inocência”. O Supremo Tribunal
Federal também se manifestou sobre o tema, concluindo que há compatibilidade
entre a prisão processual e o princípio da presunção de inocência. [12]
Nessa linha, Canotilho pondera sobre a necessidade de não
interpretar o princípio da presunção de inocência com extremo rigor semântico,
sob pena de inviabilizar toda espécie de medida cautelar e, além disso,
impossibilitar qualquer suspeita em relação ao indivíduo, o que acarretaria a
inviabilidade de investigações, produção de prova e o próprio processo penal. [13]
Mas tal posicionamento não é unânime. Kato, por exemplo,
afirma, peremptoriamente, que o instituto da prisão processual, como hoje é
concebida no sistema pátrio, é incompatível com o princípio da presunção de
inocência. Para ela o único meio admissível é utilizar a prisão processual
unicamente como medida “cautelar instrumental para assegurar a efetividade da
obtenção da prestação jurisdicional” [14],
mas mesmo nos estreitos limites da cautela instrumental, o que deixaria de fora
uma serie de possibilidades aceitas no nosso sistema[15],
o princípio da presunção da inocência seria violado. [16]
Ferrajoli, no mesmo sentido, afirma, inclusive, que entende
ser uma utopia a abolição do instituto da prisão processual, mas diz que seria
importante a existência de um provimento condenatório, ao menos de primeiro
grau, para que houvesse um decreto de prisão antes do trânsito em julgado.
Citando Manzini ele argui: “E, afinal, de que inocência se trata? (...) e então
por que não se aplica o princípio com todas as suas consequências lógicas? Por
que não abolir a prisão preventiva?”. [17]
Olhando sob outro prisma, se responder a um processo crime
traz uma nuvem de indignidade sobre o individuo, responder um processo crime
preso o marcará, sem dramas, para o resto da vida. Como lembrou Delmanto Jr.
Citando Paulo José da Costa Jr.:
Reconduzido
o prisioneiro à liberdade, as marcas da culpabilidade permanecem indeléveis,
ainda que absolvido. Não raro se pergunta: será ele realmente inocente? E o
cidadão honrado, no instante em que é levado a prisão preventivamente, fica
marcado para sempre com a mácula da desonra, com o ferro escaldante da
improbidade, que permanece latente em sua reputação. Murmura-se, a boca
pequena: ‘É, se foi para as grades, é porque algo havia’.
Ou seja, é preciso ponderar
que o fato, por si só, de ter contra si um decreto prisional, inverte a
presunção de inocência social. Se levarmos em conta que, por exemplo, nos
crimes dolosos contra a vida o indivíduo é julgado por cidadãos comuns, a
presunção de inocência jurídica pode ser invertida para presunção de
culpabilidade: se respondeu o processo preso, deve ser culpado.
Um dos principais argumentos utilizados no discurso que
decreta a prisão preventiva com base na garantia da ordem pública, é que a
prisão é necessária, pois se o acusado permanecer solto voltará a cometer novos
crimes, ou encontrará os mesmos estímulos para novamente cometê-los.
Outro argumento é que é necessário garantir a ordem pública
prendendo aqueles que possuem antecedentes criminais, pois eles soltos
provavelmente continuaram a cometer crimes.
Ora, decretar a prisão preventiva de um acusado por ele ter
antecedentes ou por que ele pode voltar a cometer crimes, nada mais é do que
assumir durante as investigações ou no curso do processo ele é culpado,
antecipadamente culpado, ferindo a presunção de inocência. Nesse sentido
Delmanto Júnior afirma que:
Não há como negar que a decretação de prisão
preventiva com fundamento de que o acusado poderá cometer novos delitos
baseia-se, sobretudo, em dupla presunção de culpabilidade: a primeira, de que o
imputado realmente cometeu um delito; a segunda, de que, em liberdade e sujeito
aos mesmos estímulos, praticará outro crime ou, ainda, envidará esforços para
consumir o delito tentado.[18]
E como bem disse Ferrajoli, tratando da presunção de
inocência e a falta de instrumentalidade da prisão processual:
A perversão do instituto (...) foi a sua mutação de
instrumento exclusivamente processual destinado à “estrita necessidade
instrutória para instrumento de prevenção e defesa social, motivado pelas
necessidades de impedir que o imputado cometa outros crimes. É claro que um
argumento como esse, fazendo pesar sobre o imputado uma presunção de
periculosidade baseada unicamente na suspeita da conduta delitiva, equivale de
fato a uma presunção de culpabilidade.[19]
Ademais, ao decretar a prisão preventiva com fundamento na
garantia da ordem pública, para que não volte a cometer crimes, significa
decretar a prisão preventiva como antecipação de pena, como meio de defesa
social, não tendo nenhum traço de cautelaridade instrumental.
4 - INFRINGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE: Ilegitimidade do fim pretendido
A proporcionalidade
que aqui tratamos é composta por três subprincípios ou elementos: adequação,
necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.[20]
Para se verificar se
uma medida que restringe direitos fundamentais é proporcional, deve ser feito o
exame da licitude do fim ou dos fins pretendidos com a medida restritiva de
direitos fundamentais. É que se depreende da lição de Demitri Demoulis:
A primeira
tarefa do operador do direito ao se valer do critério da proporcionalidade como
instrumento de controle de constitucionalidade de intervenções estatais em
direitos fundamentais constitui-se, portanto, em um procedimento duplo, qual
seja: (a) interpretar e definir o real propósito da autoridade estatal (ou
demais agentes no exercício de funções estatais ou equivalentes) e (b)
verificar se se trata de um propósito lícito. [21]
Depois de verificar
que o fim é lícito, deve ser feito o exame dos seus elementos ou subprincípios.
No exame dos elementos ou subprincípio, no dizer de Alexy, “o que se indaga é,
na verdade, se as máximas parciais foram satisfeitas ou não, e sua não
satisfação tem como consequência uma ilegalidade”. [22]
D’Urso[23]
os denomina de tríplice dimensão do princípio da proporcionalidade,
descrevendo-os como princípios parciais da proporcionalidade. Já Bonfim atribui
aos subprincípios da proporcionalidade a terminologia de “teste alemão” [24],
os quais devem ser concomitantes e sucessivos quando da aplicação do
princípio da proporcionalidade.
De toda sorte, e por
meio do exame dos subprincípios da proporcionalidade que se chega a conclusão
se uma medida que quer promover um determinado fim é proporcional.
O exame é feito em
três fases e deve ser feito na seguinte e exata ordem: Primeiro verifica-se se
à medida que se pretende tomar alcançará o fim pretendido (adequação). Depois
se examina se não há um meio menos gravoso para se conseguir o mesmo fim
(necessidade). Por fim, deve-se verificar se é razoável exigir a restrição
imposta pela medida, diante do fim visado.
Ora, o aparente rigor
metodológico do exame é decorrência lógica dos três elementos da
proporcionalidade. Se com a medida pretendida não se chegar ao fim visado, não
há de se perguntar se existe ou não outra medida menos gravosa para se alcançar
o fim. E, somente depois de ter chegado à conclusão de qual medida se pode
tomar, diante das circunstâncias fáticas, é que se fará a ponderação entre o
meio (a medida) e o fim.
Como visto o exame da
proporcionalidade implica na existência de um meio e um fim, sendo esse um dos
traços diferenciadores estabelecido por Ávila[25],
quando distinguiu proporcionalidade, de razoabilidade de proibição de excesso.
Nesse mesmo sentido Bonavides afirmou que o princípio da proporcionalidade
pretende instituir “a relação entre fim e meio, confrontando o fim e o
fundamento da intervenção com os efeitos desta para que se torne possível o
controle do excesso” [26].
O exame da
proporcionalidade examina, principalmente, no que tange ao subprincípio da
adequação, se a medida contribui para que se chegue a um fim lícito. Não se
pode dizer ser proporcional a intervenção em direito fundamental que tenha o
meio ou o fim ilícitos. Não sem razão Dimoulis afirma que, “para perseguir um
propósito lícito, o estado não pode se valer de meios ilícitos” [27].
Luiz Flávio Gomes
identifica no exame da adequação (idoneidade) a verificação se o fim pretendido
é legítimo, afirmando que a medida não é adequada “quando se pretende alcançar
fins incompatíveis ou ilegítimos (como a condenação antecipada do réu, a sua
prisão para garantir a sua própria segurança etc.)”[28].
Nesse sentido afirma Pacheco, inclusive atribuindo ao exame da adequação o
exame do fim pretendido pelo Estado (Legislativo, Executivo ou Judiciário). Diz
ele que o primeiro passo no exame da adequação é verificar qual ou quais fins
se deseja alcançar com determinada medida. Depois, verifica-se se o fim é
constitucionalmente legítimo. Por fim, verifica-se se o meio escolhido
contribui para a obtenção do fim [29],
pois nas palavras de Nicolas Gonzales-Cuellar, “as restrições aos direitos e
liberdades somente se justificam se orientadas a um fim legítimo, de forma que,
se o fim for ilegítimo ou irrelevante, não se faz necessário descer nem mesmo
ao estudo dos meios”[30].
Para que o fim seja
legítimo não precisa está constitucionalmente previsto, bastando que não seja
por ela proibido. Na lição de Pacheco: “não há obrigatoriedade de se
perseguirem fins explícita ou implicitamente previstos na Constituição,
bastando que não se persiga um fim que a Constituição veda” [31].
Contudo, Delmanto entende que “a melhor solução para verificar se os fins de
determinada medida cautelar são ou não legítimos é a análise do Texto
Constitucional, em especial dos princípios, direitos e garantias previstos” [32].
E qual seria a
consequência de perseguir um propósito ilícito? “Propósitos ilícitos não podem
ser perseguidos, configurando inconstitucionalidade já nessa primeira etapa do
exame da proporcionalidade” [33].
Paulo Bonavides ao
tratar do princípio da proporcionalidade, ensina que uma de suas virtudes é
exatamente limitar o arbítrio estatal na sua ingerência sobre os direitos
fundamentais, pois “transforma, enfim, o legislador num funcionário da
Constituição” [34]. Porém,
“quanto mais livre o legislador para estabelecer o fim de sua produção
normativa, tanto mais fraca a eficácia do princípio da proporcionalidade” [35]
Scarance, por sua vez,
na mesma linha de Delmanto, ao tratar dos pressupostos e requisitos da
proporcionalidade, parece entender que os fins precisam estar previstos
constitucionalmente ao afirmar que “a limitação a direito individual só tem
razão de ser se tiver como objetivo efetivar valores relevantes do sistema
constitucional”. [36]
É claro que, aqui está
se tratando especificamente da legitimidade do fim, em si, sem compará-los a
outros fins que o Estado deve promover e, que por vezes, podem estar previstos
implícita ou explicitamente na Constituição. Esse exame comparativo entre os
fins fica para a técnica da ponderação. Assim, por exemplo, o fim de garantir a
ordem pública é legítimo, assim como o de preservação da liberdade.
Porém, quando o
Legislador em norma infraconstitucional prevê a prisão processual para garantir
a ordem pública ele busca um fim constitucionalmente permitido? Continuaria
sendo um fim lícito? A resposta nos parece ser não.
Toda prisão antes da sentença penal condenatória deve ter uma
finalidade cautelar instrumental do processo. Não podendo o Legislador
confundir a finalidade da prisão pena (prevenção e retribuição), com a
finalidade da prisão processual.Tratando da falta de característica da
cautelaridade instrumental da garantia da ordem pública afirmou Gomes Filho que
ela se relaciona com finalidades “que não se enquadram nas exigências de
caráter cautelar propriamente ditas, mas constituem formas de privação de
liberdade adotadas como medidas de defesa social”[37].
Nesse mesmo sentido Tourinho Filho Afirmou:
Quando se decreta a prisão preventiva como “garantia
da ordem pública”, o encarceramento provisório não tem o menor caráter
cautelar. É um rematado abuso de autoridade e uma indisfarçável ofensa a nossa
Lei Magna, mesmo porque expressão “ordem
pública” diz tudo e não diz nada.[38]
Nessa linha de pensamento Aury Lopes Jr. afirma que é
inconstitucional transformar uma atividade tipicamente de polícia – a garanti
da ordem pública – em finalidade processual, por explícita falta de
cautelaridade instrumental do processo da medida cautelar prisional.[39]
Ademais, a garantia da ordem pública tem se tornado um
instrumento poderoso para saciar a opinião pública que ao julgar
antecipadamente o acusado – com base nos dados informados pela mídia – demanda
uma postura célere e contundente dos poderes constituídos, principalmente
aqueles mais diretamente ligados a persecução criminal. Com razão Bauman, ao
tratar do crime, da reação social e da necessidade de demonstração de força, ao
estilo do direito penal simbólico e do processo penal de emergência, afirmou
que:
A construção
de novas prisões, a redação de novos estatutos que multiplicam as infrações
puníveis com prisão e aumento das penas – todas essas medidas aumentam a
popularidade dos governos, dando-lhes a imagem de severos, capazes, decididos
e, acima de tudo, a de que fazem algo (...).[40]
E, exatamente, para satisfazer o clamor público ou midiático
por justiça imediata e exemplar decreta-se a prisão preventiva. Como já bem
observou Ferrajoli, “a presteza da pena desejada por Beccaria e Bentham foram
substituídas pela imediação e pela infalibilidade da prisão preventiva” [41].
Ora, utilizar a prisão processual para antecipação célere da pena e satisfação
da demanda social por punição, sob o pretenso requisito da garantia da ordem
pública não é constitucionalmente permitido, pois fere desde a dignidade da
pessoa humana até a presunção de inocência.
Portanto, não nos parece poder ser atribuído ao Poder
Judiciário, por meio de medida cautelar prisional, a garantia da ordem pública,
sendo ilegítima essa finalidade, ferindo o princípio constitucional da
proporcionalidade.
5. CONCLUSÃO
No caso da garantia da
ordem pública, existe uma série de desafios a serem suplantados para que a
consideremos um fim constitucionalmente permitido. Vejamos:
Primeiro, a garantia
da ordem pública, por ser fim que afeta a liberdade do cidadão está regulada
pelo princípio constitucional da legalidade. A legalidade no aspecto
taxatividade importa que os termos de uma norma devem ser claros, taxativos, de
alta densidade semântica. O que, evidentemente não ocorre com o termo “ordem
pública”.
O que é ordem pública?
Quais as situações que a ordem pública precisa ser garantida? Como visto,
qualquer circunstância pode ser considerada para indicar a necessidade de
garantir a ordem pública.
Já se prendeu para
garantir a ordem pública por causa da gravidade do delito, por causa da
credibilidade da justiça, para evitar que o crime ocorra, ou volte a ocorrer,
para salvaguardar a vítima das ações do suposto ofensor, para salvaguardar o
suposto ofensor da vítima, por causa do clamor público (muitas vezes confundido
com a exposição midiática do caso). Já se prendeu para que solto o acusado não
tenha os mesmos estímulos e volte a praticar outros crimes. Já se prendeu pela
periculosidade do agente, pois tem anotações na sua folha de antecedentes
criminais. E as circunstâncias que se amoldam a necessidade de garantir a ordem
pública se multiplicam a cada dia, e sem querer se extremista, tendem ao
infinito.
A finalidade de
garantir a ordem pública é, de fato, uma carta em branco dada pelo legislador
ao magistrado, ferindo o princípio da legalidade (taxatividade), o que não é
permitido pela Constituição.
Segundo, a finalidade
garantir a ordem pública para a decretação da prisão processual, não raro fere o
princípio da presunção de inocência, pois o discurso que fundamenta a decisão,
não raro, passa pela admissão que o indivíduo preso cometeu o crime.
Terceiro, a finalidade
garantir a ordem pública é categoria externa ao processo, não tendo viés de
cautela processual instrumental, logo nada mais é do que antecipação de pena,
ferindo o princípio da presunção de inocência.
Ora, dito o que foi
dito, voltamos a questão da análise que pressupõe o exame da proporcionalidade:
o exame da licitude fim perseguido. Se o fim perseguido tem que ser, ao menos,
não proibido pela constituição, é possível assumir que a finalidade garantir a
ordem pública, por meio de prisão processual, é constitucional? Pensamos que
não. Todavia, mesmo que se considere que é possível afirmar, em abstrato, a
legitimidade do fim “garantir a ordem pública”, será muito difícil no caso
concreto, em um discurso racional e legítimo, demonstrar que o fim pretendido é
lícito.
Portanto, fazendo uma
checagem da garantia da ordem pública como requisito da prisão preventiva pelos
princípios garantidores da legalidade, presunção de inocência e
proporcionalidade, essa finalidade pretendida pelo legislador para a prisão
processual não sobrevive a pecha da inconstitucionalidade.
[1] TOURINHO FILHO, Fernando da
Costa. Processo Penal. São Paulo:
Saraiva, 2009, p. 427. 3v.
[2] Vide nesse sentido Luiz
Flávio Gomes, na obra: Prisão e Medidas
Cautelares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 41: “Está decretado
(pelo STF), no Brasil, o fim da execução provisória (antecipada) da pena (que
ainda não transitou em julgado). Execução provisória, no processo penal, só se
for em favor do réu (favor rei),
nunca contra ele, tendo em vista sua presunção de inocência”.
[4] MIRABETE, Júlio
Fabrini. Código de Processo Penal
Interpretado. São Paulo: Atlas, 1997, p. 414.
[5] LOPES JR, Aury.
Processo Penal e sua conformidade com a
Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 204.
[6] LOPES JR, Aury.
Processo Penal e sua conformidade com a
Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 204.
[7] DELMANTO, Fábio.
Medidas Substitutivas e Alternativas à
Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 27.
[8] “Art. 9. Todo homem
presume-se inocente enquanto não houver sido declarado culpado; por isso, se se
considerar indispensável detê-lo, todo rigor que não seria necessário para a
segurança de sua pessoa deve ser severamente punido pela lei”.
[9] DELMANTO, Fábio.
Medidas Substitutivas e Alternativas à
Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 23.
[10] VEGA TORRES apud LOPES Jr.,
Aury. Processo Penal e sua conformidade
com a Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 180.
[11] Para aury Lopes Júnior o
dever de tratamento tem duas dimensões: interna e externa. “Na dimensão
interna, é um dever de tratamento imposto – primeiramente – ao juiz,
determinando que a carga da prova seja inteiramente do acusador (pois, se o réu
é inocente não precisa provar nada) e que a dúvida conduza inexoravelmente a
absolvição; ainda na dimensão interna, implica severas restrições ao (ab)uso
das prisões cautelares 9como prender alguém que não foi devidamente
condenado?). Externamente ao processo, a presunção de inocência exige uma
proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização (precoce) do réu. Vide
sua obra: Processo Penal e sua conformidade
com a Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 182.
EMENTA: HABEAS CORPUS. CONDIÇÕES PESSOAIS FAVORÁVEIS. PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA. PRISÃO PREVENTIVA. POSSIBILIDADE. PRECEDENTES. EXTENSÃO DO BENEFÍCIO CONCEDIDO AO CO-RÉU. IMPOSSIBILIDADE. EXCESSO DE PRAZO. CONFIGURAÇÃO. ORDEM CONCEDIDA. É firme a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, assim como a do Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que as condições pessoais favoráveis, acaso existentes, não impedem a decretação da prisão preventiva do paciente, quando presentes os requisitos dela autorizadores. (HC 86.605, rel. min. Gilmar Mendes, DJ de 10.03.2006; HC 82.904, rel. min. Ellen Gracie, DJ de 22.08.2003). Inexiste incompatibilidade entre o princípio da presunção de inocência e o instituto da prisão preventiva, podendo esta ser decretada quando presentes os requisitos autorizadores, estando caracterizada, portanto, sua necessidade (HC 70.486, rel. min. Moreira Alves; HC 80.830, rel. min. Maurício Corrêa; HC 84.639, rel. min. Joaquim Barbosa). Inaplicabilidade do art. 580 do Código de Processo Penal, tendo em vista que o decreto de prisão preventiva analisou expressamente a situação pessoal do paciente, afirmando sua periculosidade, o que não ocorreu em relação ao co-réu que teve a prisão revogada. Caracterizado o constrangimento ilegal consistente no excesso de prazo da prisão preventiva, que já ultrapassa três anos, sendo que, desde novembro de 2005, o processo não teve regular andamento, e sequer há certeza nos autos de que os réus foram devidamente intimados para requerer diligências, na forma do art. 499 do Código de Processo Penal. Ordem de habeas corpus concedida. (HC 88362 / SE – SERGIPE - Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA - Julgamento: 24/10/2006 - Órgão Julgador: Segunda Turma – STF. (http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=HC+84%2E639&base=baseAcordaos): Acesso em: 19.08.2011)
[13] CANOTILHO apud DELMANTO,
Fábio. Medidas
Substitutivas e Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de
Janeiro: Renovar, 2008, p. 23.
[14] KATO, Maria Ignez
Lanzellotti. A (Des) Razão da Prisão
Provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 113.
[15] Por exemplo, as prisões para
garantir a segurança social (garantia da ordem pública ou da ordem econômica).
[16] KATO, Maria Ignez
Lanzellotti. A (Des) Razão da Prisão
Provisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 113.
[17]Apud FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2006, p. 511.
[18] DELMANTO
JÚNIOR. Roberto. As Modalidades de
prisão provisória e seu prazo de duração. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.
179.
[19] FERRAJOLI,
Luigi. Direito e Razão. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2006, p. 509.
[20] Vide, por exemplo: ARAÚJO,
Francisco Fernandes de. Princípio da
Proporcionalidade – significado e aplicação prática. Campinas: editora
Copola, 2002, p. 57; D´URSO, Flávia. Princípio
Constitucional da Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas,
2007, p. 66: “princípios parciais ou subprincípios”.
[21] DIMOULIS, Dimitri e MARTINS,
Leonardo. Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 191.
[22] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São
Paulo: Malheiros, 2008, p. 117, nota de rodapé 84. Lembrando que Alexy trata os
elementos adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito como
máximas parciais, pois trata a proporcionalidade como uma máxima (uma regra
máxima).
[23] D´URSO, Flávia. Princípio Constitucional da
Proporcionalidade no Processo Penal. São Paulo: Atlas, 2007, p. 66.
[24] BONFIM, Edilson Mongenout. Curso de Processo Penal. São Paulo:
Saraiva, 2006, p. 61.
[25] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à
aplicação dos princípios jurídicos. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p.
161.
[26] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Malheiros, 2011, p. 393.
[27] DIMOULIS, Dimitri e MARTINS,
Leonardo. Teoria Geral dos Direitos
Fundamentais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 192.
[28] GOMES, Luis Flávio; MARQUES,
Ivan Luís. Prisão e Medidas Cautelares.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 52.
[29] PACHECO, Denilson Feitosa. O Princípio da Proporcionalidade no Direito
Processual Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 153.
[30] Apud DELMANTO, Fábio.
Medidas Substitutivas e Alternativas à
Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 63.
[31] PACHECO, Denilson Feitosa. O Princípio da Proporcionalidade no Direito
Processual Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 155.
[32] DELMANTO, Fábio.
Medidas Substitutivas e Alternativas à
Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 63.
[33] DIMOULIS, Dimitri e MARTINS, Leonardo. Teoria Geral dos Direitos Fundamentais.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 190.
[34] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Malheiros, 2011, p. 424.
[35] BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São
Paulo: Malheiros, 2011, p. 423.
[36] FERNADES, Antônio Scarance. Processo Penal Constitucional. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p.52.
[37] Apud DELMANTO,
Fábio. Medidas Substitutivas e
Alternativas à Prisão Cautelar. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 159,
rodapé 106.
[39] Aury Lopes Jr. Apud SOUZA, Marcelo Ferreira de. Segurança Pública e Prisão Preventiva no
Estado Democrático de Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 23.
[40] BAULMAN apud
KATO, Maria
Ignez Lanzellotti. A (Des) Razão da
Prisão Provisória. Rio de Janeiro:
Lumen
Juris, 2005,
p. 31.
[41] FERRAJOLI,
Luigi. Direito e Razão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 516. No
mesmo sentido, vide Delmanto Jr., p.11: “Não temos dúvida de que, na prática, a
prisão provisória assume aspectos de justiça sumária. É providência cômoda e,
pela celeridade com que é decretável, traz à comunidade, como salientado, sensação
de eficácia do sistema penal, de resposta jurisdicional rápida e severa, uma
vez que a prisão é, antes de tudo, a maior dentre as várias humilhações que o
processo penal pode impor a uma pessoa”.
